Assim sendo, e como já vinham mais uns tantos de trás, aqui fica uma reposição repescada do limbo do velho Janela Indiscreta.
Divirtam-se, que o lema da casa é rabelaisiano.
O musaranho e eu, só temos a agradecer as visitas conhecidas e às desconhecidas. O número será sempre um mistério, já que nunca tivemos medidor dessas coisas. Preferimos aquele rodapé taxionómico e ligeiramente inútil, como apraz no reino da Narragónia.
JAVARDINHAS A FIAR
Muito recato e mãos ocupadas sempre foi receita aconselhada a mulher solteira ou casada. Evitava desocupações que só serviam para estimular manhas femininas com os consequentes sarilhos que daí advinham para o sexo oposto. E deles nem filósofos como Aristóteles e Virgílio, escaparam, como já o contámos.
Na Idade Média a mulher casta era representada pela imagem de uma jovem sentada a fiar com a roca e o fuso, seguindo o ditado popular- "a fiar e a tecer ganha a mulher de comer" 1.
Era uma casta fiação, mas também “uma seca” como bem se queixava a coquete Isabel, da Farsa "Quem tem Farelos" do Gil Vicente:
"Faz a moça mui mal feita,
corcovada, contrafeita,
de feição de meio anel;
e faz muito mal carão,
e mal costume dolhar."
E a Inês Pereira que antes quer "asno que a carregue que cavalo que a derrube" também estava disposta a tudo para se ver livre dessas canseiras inúteis, renegando
“deste lavrar
E do primeiro que o usou;
Ó diabo que o eu dou,
Que tão mau é d'aturar.”
Como tudo tinha o seu oposto, nas constantes psicomaquias medievas, a dedicação das fiadeiras podia ser virada às avessas. Quando se queria apontar a cobardia ou mariquice de um homem, colocava-se-lhe um roca e um fuso na mão, e lá ficava o desgraçado com mais fama que proveito. Pior sucedia quando a fiação se tornava sinónimo de javardice de rameira.
Um ditado da época lembrava este mundo às avessas: "quando a rameira fia, o letrado reza, e o escrivão pergunta quantos são do mês, mal vai a todos três"
A casta alterna com a porca e, para acentuar a troça, usava-se o bestiário satírico, mostrando-se uma javali atarefada na fiação doméstica como sinónimo de prostituição.
A "javali-fiadeira" aparece na marginália medieva sendo comum a sua representação em cadeirais de coro.
Por cá existe uma, esculpida numa das misericórdias do cadeiral do Funchal, idêntica a outras como as de Kempen na Alemanha; Ciudad Rodrigo; Toledo ou da igreja de S. Nicolau em Amsterdão, bem como em gárgulas e gravuras da época.
A brincadeira escatológica tem vários paralelos na literatura da época. É representada na imortal tragicomédia, referida no post anterior: La Celestina, escrita por Fernando Rojas, um judeu converso, editada pela primeira vez em 1499 em Burgos. A Celestina é a velha alcoviteira que trata de tecer as tramas dos amores dos jovens, num mundo cínico e cruel onde todos acabam vítimas das suas paixões. No acto III diz a velha alcahueta: "pocas vírgenes, a Dios gracias, has tú visto en esta ciudad que hayan abierto tienda a vender de quien yo no haya sido corredora de su primer hilado ".
Mais adiante, insiste-se na associação entre o fuso e o falo masculino: "con mal está el huso cuando la barba no anda de suso"2.
As aparências iludem – a velha rameira Celestina ou a Ama do Auto da Índia, quando se lembram da roca e do fuso não é em trabalho casto que estão a pensar – "quero fiar e cantar/ segura de o nunca ver" suspirava a abandonada mulher do mercador embarcado desejando que ele não tornasse vivo a Lisboa.
Goya conhecia estas histórias todas não se vai esquecer das fiadeiras nas suas gravuras satíricas. No Álbum B, que antecede os Caprichos, assim representa as raparigas de má vida, tonsuradas e encarceradas no reformatório, acrescentando a legenda irónica: San Fernando como hilan!
Mais tarde vai representá-las a depenar os "frangos" que se deixam apanhar nas suas teias.
Quanto às Celestinas, continuaram a ser imortalizadas. Picasso deixou-nos uma tremenda Celestina vesga e, recentemente, até a Paula Rego as retomou.
Já as javardinhas medievais nunca deixaram de ser vistas com agrado num mundo goliardesco, onde a virtude convivia descontraidamente com o pecado. Ao lado da javali gárgula de Plasencia vê-se um alegre campónio muito entusiasmado a tocar a gaita de foles.
Tocar gaita também era outra música e quem melhor a soprava ao desafio eram os porcos músicos, mas essa é outra história, que a apagada e vil tristeza, de que falava Camões, fez esquecer.
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1- Francisco Roland (F.R.L.I.L.E.L.), Adágios e provérbios, rifãos e anexins da língua portuguesa... compilação de 1841)
2-Isabel MATEO GÓMEZ, Temas profanos en la escultura gótica espagñola. Las sillerias de coro, Madrid, Instituto Diego Velazquez, 1979)