«Os jumentos, como os poetas e os tolos, vêem os anjos do Senhor.
Pois não é assim, meu profeta Balaão? Profeta da minha embirra, hirto como um esqueleto de vaidade, a chicotear a azêmola sublime, e estacada e deslumbrada, perante duas asas cor de neve! O profeta não descortina vivalma, e o chicote vibra-lhe nas mãos enraivecidas. São horas do almoço e o demónio do burro não se mexe! Um burro é só manha no focinho; só fome no pêlo hirsuto...só tristeza nos olhos; só orelhas voltadas para o Céu, como dois magos da Caldeia! Fita as orelhas e ouve a música dos astros; ou as deixa cair, atentas aos segredos mais íntimos da Terra...Ouve a música celeste e a terrestre... E lá vai, muito lanzudo e macambúzio, trote que trote, na poeira branca dos caminhos.
Mas este jerico não se mexe. O chicote relampeja nas garras do profeta. Súbito, o hirto visionário racional que nada vê, o homem solene da terra morta, voa pela cabeça fora do jumento, que metera a cabeça entre as pernas, e estatela-se no chão, a dois passos do Anjo, que se fica a rir como um perdido!
O anjo ri como um perdido, e o seu riso é luz da Primavera; e o profeta estirado na poeira é o cadáver do inverno a desfazer-se, no fundo de uma barroca...»
Teixeira de Pascoaes, O Pobre Tolo.