Só é pena o tira-dentes ainda não ter chegado ao SNS
[reposição da Janela Indiscreta]
[Qualquer semelhança com a realidade cá da terra é pura coincidência. Como se sabe, quem não tão dinheiro não tenha luxos]
CALORES DE DENTISTA; ARREPIOS DE PACIENTE
Na Idade Média a desconfiança face ao talento dos médicos estava generalizada e vários ditados populares satirizavam muita charlatanice que imperava entre esses doutores. ”
Mais matou a ceia que curou Avicena”; ”os erros do médico a terra os cobre”; “
quando o doente diz ai, o médico diz dai”
No cadeiral de Santa Cruz de Coimbra pode ver-se um destes cirurgiões, de fórceps na mão, a tentar arrancar um dente a um lobo como se a sua arte fosse mais apropriada a bestas que a humanos. Possivelmente estavam bem um para o outro, já que também se dizia que “
o lobo perde os dentes mas não perde o costume” e a temível fama deste animal era associada a uma série de lendas em torno da boca voraz ou “
garganta iniciadora”.
Numa misericórdia do cadeiral trecentista da Abadia de Saint-Lucien-les-Beauvais a vítima da cárie é um monge e quase o podemos imaginar a pedir ajuda a Santa Apolónia.
Como se dizia na tragicomédia La Celestina, “t
rês caras tiene el médico: de hombre, de angel y de demónio” e no cadeiral de Ely já não há lugar para esperança — o dentista torturador é o próprio demónio.
Apesar das sátiras, a prática de odontologia medieval estava restrita a elites e era caríssima, restando os curiosos tira-dentes para o povo. Os mais abonados podiam tratar as cáries que se julgava serem causadas por vermes.
Só por volta de 1700 foi redescoberto e desenvolvido o processo de fabrico de dentes postiços que os Etruscos já conheciam. A falta de dentes era comum e até a rainha Isabel I de Inglaterra usava bolinhas de algodão para disfarçar os que não tinha.
O maior problema consistia na técnica da anestesia. Mandrágoras medievais; ópio e láudano deviam dar grande moca e acrescentar alguns espasmos mais suspeitos...
Os grandes caricaturistas ingleses do sec. XVIII e XIX deixaram-nos algumas estampas elucidativas do teor destas intervenções odontológicas: possantes e nobres matronas entregavam-se à mão destes artistas, em sessões ruidosas e um tanto desbocadas a que o próprio esposo, fosse conde ou marquês não se importava de assistir...
Como chegámos ao século XXI, aproveito para recordar o trabalho pioneiro do
Dentista Frígido que só arranca dentuça ao som do samba.
Aqui fica o seu Sambinha da Paz
Bebendo um chôpe
Ouvindo um som
Enganando o mundo dizendo
"Valeu cara, tudo de bom"
Tratando dente careado
Ao ritmo da marcha do soldado
Pôxa, dentista já não chumba dente
Mas o gringo quer dar chumbo
Quer dar chumbo em certa gente
(estribilho)
Dentista já não chumba dente
Mas o gringo quer dar chumbo em certa gente
(entra a bateria)
© Dentista Frígido
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Imagens:1- cadeiral de Santa Cruz de Coimbra, c. 1513-18; 2-Santa Apolónia — mártir cristã morta em 249 por se recusar a renunciar à fé cristã. Os torturadores arrancaram-lhe todos os dentes e depois foi queimada na fogueira. Book of Hours ("Hours of Simon de Varie"; use of Paris), 1455; 3- dentista a arrancar dente a um monge, cadeiral da Abadia de Saint-Lucien-les-Beauvais (sec.XIII); 4- misericórdia do cadeiral de Ely-demónio-dentista(sec.XIII): 5- dor de dentes, gárgula de Oxford: 6- Copper, The country tooth drawer (1812-1817); 7- Thomas Rowlandson (1756-1827), Transplanting of teeth, 1787.
consultar:(ver: António Delicado, Adágios portugueses reduzidos a lugares comuns, Lisboa, 1651; Francisco Rolland, Adágios, provérbios, rifãos, e anexins da língua Portuguesa, 1841; Ladislau Batalha, História Geral dos Adágios Portugueses,1924).