(...) António José Saraiva, imbuído da ingenuidade típica dos neófitos da nova moral -à data de 1960 - acreditava então que, apesar de tudo, a amoralidade maquiavélica teria constituído um progresso em relação à velha moral. E isto é perfeitamente lógico, já que, à luz da nova-moral, a velha moral é uma imoralidade, uma moral perversa. Nesse sentido, não será difícil preferir a amoralidade à imoralidade.
Todavia, mais que preparar o terreno para a nova moral, o maquiavelismo -isto é, a amoralidade renascentista -, mina-o, armadilha-o, dissolve-lhe as fundações. Pior: transforma-se nelas. Ao refundar a moral com base na "luz da razão" contra a "treva da tradição", o Iluminismo apenas mistifica e embruma: na verdade, planta-se sobre o maquiavelismo, nele se enxerta e frutifica. Desde então, a razão mais não serve que de pódio e trampolim à vontade. E a ciência, em larga medida, conforma-se a assento para as alcatras e respectivas vazões do Poder. Exactamente na proporção em que o trono da regra se resume a mero penico da lei.
Da ausência de fundamento real germinarão todos os fundamentalismos inerentes aos sucessivos "renascimentos morais". A retórica política tentará sempre compensar o vazio ontológico. O Ter a Verdade eclipsará, metódica e perversamente, o Ser da Verdade. A busca cederá lugar à usura.
Se três séculos de exuberante comprovação empírica não chegam, venham mais três milénios!...
E tudo começa em Maquiavel, que, por incrível que pareça, não consta que fosse protestante nem tivesse andado a ler Kant?...(...)
A ler, na íntegra, no Dragoscópio