OS HESICASTAS
No século VI da nossa era, Justiniano, Imperador de Bizâncio, fundou no Monte Sinai o Mosteiro de Santa Catarina. A abside da igreja principal foi decorada com um mosaico que representa a Transfiguração. Para os primeiros monges do convento, essa visão só concedida a três Apóstolos (Pedro, Tiago e João) e em que Cristo, no Monte Tabor, lhes apareceu ao lado de Elias e de Moisés, era a única manifestação da «luz de Deus», depois da Aparição de Jeová
a Moisés, no Monte Sinai. Sintomaticamente, em toda a tradição da mística ortodoxa até ao século IV, a «luz dos séculos a vir» (essa luz que tornou as vestes de Cristo mais resplandecentes e brancas do que qualquer greda de terra, na descrição de Marcos, 9:2-8), surgida por antecipação no Sinai, manifestou-se plenamente no Tabor. Para atingir o êxtase dos Apóstolos em tal momento (êxtase tal que Jesus, quando desciam do Monte, lhes proibiu que contassem o que tinham visto fosse a quem fosse «até que o Filho do Homem ressuscitasse dos mortos») essa luz foi a imagem mais procurada pelos monges do Oriente Cristão.
Entre eles, avulta João, chamado Clímaco, Higómeno de Santa Catarina entre 580 e 650. O cognome veio-lhe da sua obra mais célebre: A Escada do Paraíso ( klimax é o nome grego para escada).
Nesse livro, onde se reflectem influências muito mais antigas, como as de Macário o Egípcio e de Evagro Pôntico, desenvolve-se um complexíssimo sistema de espiritualidade monacal e estabelece-se uma radical diferença entre o hesicasta (de hésiquia=solidão) e o cenobita. «O hesicasta é aquele que aspira a circunscrever o Incorporal no seu corpo carnal. É o que vive sozinho com Deus. O cenobita precisa da ajuda dos irmãos. O hesicasta só pode ser auxiliado pelos anjos.» Por isso, «fechai a porta da vossa cela ao vosso corpo, a porta da vossa boca às vossas palavras, a porta interior aos espíritos.
Mais vale um pobre obediente do que um hesicasta distraído. A solidão é um culto e um serviço ininterrupto a Deus. Seja a vossa respiração ("sopro") tão una como a memória de Jesus. Percebereis, então, a necessidade da solidão.»
A oração de Jesus está, pois, no centro de toda a espiritualidade hesicástica. O Nome do Verbo Encarnado confunde-se com as funções essenciais à vida: está presente no «coração», está ligado à «respiração». Mas João, o Clímaco, como todos os grandes doutores da «oração ininterrupta», avisa contra as possíveis confusões entre «a memória de Jesus» e os efeitos que a imaginação pode produzir na alma dos monges. Nunca essa «memória» deve tomar a forma de «meditação» sobre tal ou tal episódio da vida de Cristo, nunca o noviço deve representar uma imagem exterior a si próprio. Só assim, «a visão luminosa» pode deixar de ser entendida como símbolo ou como consequência da imaginação, para ser rigorosamente uma teofania, tão real como a do Monte Tabor, pois que nela se tornará presente o próprio Corpo Deificado de Cristo.
A distinção entre a visão desse Corpo Deificado (que só três Apóstolos tiveram no Monte Tabor) e a representação do corpo humano (visto por todos os que conheceram Cristo e imaginável em qualquer representação de Cristo) é capital na patrística ortodoxa como o fora na patrística grega. Tinha a vencer dois escolhos consideráveis, de sinal oposto: ou uma tal abstracção da Pessoa de Cristo que o mistério da Encarnação acabava por ficar elidido (concepção neoplatónica da divindade natural do intelecto, que ainda é dominante em Evagro Pôntico) ou uma representação tão presente do Seu Corpo Humano que «a luz dos séculos a vir» se podia reduzir à imagem mental. E João, o Clímaco, retoma a distinção na própria visão do Cristo sobre Si Próprio. O que os Apóstolos viram na Transfiguração jamais Ele o viu. «O Seu próprio Corpo era um limite à Sua Glória. Era um Corpo que podia ser tocado por outros corpos, ao contrário do Corpo Ressuscitado ou Transfigurado (Noli mi tangere )». Se alguns predecessores do autor da Escada do Paraíso (por exemplo, os Messalianos, para os quais Deus e Satanás coexistiam no homem como forças iguais) tinham tendido (como o maometanismo que, em parte, deles descende) para a interdição de qualquer representação da imagem divina, os hesicastas de Santa Catarina insistiam nessa representação (precisamente para a separar da visão) e incluem, igualmente, como acima disse, as primeiras pinturas conhecidas tendo como tema a Transfiguração. Mais tarde, Gregório de Nissa falará das «trevas de Deus» ou da «treva luminosa» e Simeão acentuará o realismo intenso de uma mística cristocêntrica, distinguindo a Essência Divina (que a teologia apofática ou negativa pos tulara como radicalmente inacessível) e a presença de Cristo nos homens e como homem, acto (energela) livre de Deus.
A esta altura desta árida crónica (uma vez não é costume e só poucos saberão como estou a banalizar-me) quem ainda não desistiu perguntará a que propósito vem tudo isto e o que é que tudo isto tem que ver com os meus filmes da vida. Apetecia-me responder-lhes com um flashback sobre a velha Faculdade de Letras (a do Convento de Jesus) e sobre o meu professor de História da Filosofia Medieval, o dr. Luís Ribeiro Soares, que, em mim e noutros, incutiu para sempre o gosto por estas questões. Não é culpa dele se tendi sempre a vê-las mais sob espécie estética do que teológica.
Mas, se não fosse o que com ele aprendi, também teria ficado com uma visão meramente estética do filme de Scorsese, The Last Temptation of Christ.
Porque uma das reflexões mais apaixonantes que se podem fazer em torno deste filme é precisamente a do conflito nele figurado entre o texto de Kazantzakis que Scorsese adaptou (profundamente imbuído desta tradição da mística ortodoxa) e a formação católica do realizador, inscrita numa tradição que, há muitos séculos, subalternizou ou esqueceu estas questões. O filme de Scorsese surge, assim, por um lado, como uma metáfora católica do mistério da dupla natureza de Cristo e, por outro lado, como uma aproximação da visão dos hesicastas, retratando Cristo dentro dessa antiquíssima tradição.
Duas sequências do filme colocam o problema de modo inédito no imaginário ocidental.
A primeira é a sequência da ressurreição de Lázaro. Se nela subsiste o conhecido paralelismo com a ressurreição de Cristo (como Cristo, Lázaro, foi ressuscitado ao fim do terceiro dia) a representação, nessa sequência, dos corpos de Cristo e de Lázaro, ecoa a distinção capital entre visão e imagem. Face às trevas do túmulo, e à abertura da gruta onde jaz Lázaro, Cristo é quase reduzido a silhueta, como se se despisse da corporalidade e fosse pura luz. Pelo contrário, Lázaro, quando ressuscita, é a imagem do Cristo das Dores da tradição ocidental. Mas quando caminha para Cristo, uma luz diversa o nimba, como se ele também fosse prefiguração da «luz dos séculos a vir».
A outra sequência é a da entrega por Cristo do seu Coração, imagem fortíssimamente carnal, mas que reconduz a quanto atrás se disse sobre a fusão do Verbo Encarnado com as funções essenciais à vida. Em muitas outras sequências, nomeadamente na prodigiosa sequência da tentação no deserto, o que Scorsese encena é, rigorosamente, a distinção entre visão e representação, memória de deus e imagem do mundo. Por isso, é tão singularmente coerente que a última tentação seja uma representação representação conduzida por um anjo, único companheiro do Cristo Hesicástico), representação apenas interrompida quando a visão se sobrepõe a ela, ou seja, quando Cristo se redescobre, sozinho, na Cruz. Por isso, Kazantzakis fala do «tudo está consumado» como de um «grito triunfal».
«Porque era como se dissesse: tudo começa.» Conseguir essa visão através de uma imagem — último plano do filme — é proclamar a realidade da energia e a radical inacessibilidade da essência.
Nada se entende de nada, se não se entender isto.
Mais ninguém escrevia crónicas de cinema assim.
Descansa em paz, Bénard da Costa.