Um burro

Eu encontrei, um dia, a pastar sobre um prado
Um burro magro, esguio e triste e abandonado...
Ele tinha o quer que é de anacoreta ascético
E na sua fronte triste um doce olhar profético...
Um inspirado olhar, profundo e visionário
Que vê tudo através da noite do Calvário...
Que, além da realidade, avista o Ideal !
Olhar inconsciente, olhar irracional
Ou como a luz do luar ou como a luz do dia
Que avistam um perfume e vêem toda a harmonia...

Olhar que só descobre o que o Universo sente;
Olhar feito pra ver o Espírito somente...
Que numa lágrima só vê bendita dor,
Numa pedra uma alma e num lírio um amor.
Divino olhar que nos parece amortecido.
Como um astro remoto a nada reduzido.
Porque brilha no Além, no azul distanciamento,
Onde tudo é paixão, beleza e sentimento!...
O seu corpo era alto, humano e muito ossudo.
Corpo de sábio definhado em longo estudo.
E o seu belo perfil, no ar, se desenhava
E o Sonho, como a luz, seu corpo aureolava...
E ao vê-lo eu meditei, ó Deus, numa alma triste
Que sofre a eterna dar de tudo quanto existe...
Numa alma misteriosa, oculta e incompreendida,
que conhece o princípio e o vago fim da Vida...
Que atingiu o Absoluto e a pura consciência
De tudo — desde a Forma ao resplendor da Essência...

Que vive na visão eterna da Verdade,
E que vai toda amor, toda paz e humildade,
Sob açoites cruéis e duras chicotadas,
Pela horrorosa mão da Estupidez vibradas,
Em busca do Martírio, a caminho da cruz,
Para morrer salvando, assim como Jesus!.,,

Teixeira de Pascoaes

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