Só não é enxovalho porque eu sou testemunha que ela nunca lhe chamou betinho. Toda a gente sabe que a mim se deve a inspiração, e por acaso foi ao Raposo mas só lhe chamou ornitorrinco excelentíssimo, ora!
e nem estava a incluir o grande DJ do what do you represent, claro. Nem o pico de oro... que injustiça.
Vergonha! Vergonha, como diria o maradona
Mas pronto, Oscar sem estes percalços não é Oscar, agradecemos na mesma a atenção e o mais importante foi o nosso doninha ter ganho um justo prémio pelo esforço. Por isso, Feliz 2006 para a ornitorrincada toda da blosgosfera e nada de rancunes, hããã?
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sim ,que não é por nada mas em menos de 15 dias já houve 18 "deslincagens"... é obra, meus, é obra e não é para qualquer um...
Mas não será acerca destas nem das variantes “tritónicas” de Matthey Barnet que vamos hoje falar.
Por agora volta-se aos tempos mais antigos quando os viajantes ainda temiam mais o canto híbrido das mulheres-peixe ou pássaro do que o da brigada de trânsito.
Com efeito, as sereias da mitologia grega faziam parte, juntamente com as hárpias da espécie temível dos encantamentos femininos. Mas ainda assim as sereias não eram tão cruéis como as hárpias/euménides que raptavam os corpos dos mortos para usufruírem dos seus prazeres, nem iam matando o rei dá Trácia à fome, roubando-lhe todas as iguarias.
Mas já tiveram penas e voaram e foi assim, como pássaros agoirentos a cujo canto os marinheiros não conseguiam escapar, que Ulisses quis ser tentado amarrando-se ao mastro do barco. Perderam as penas por vingança das musas que lhes roubaram as vestes aladas. A partir daí ficaram privadas de voar, ganharam as caudas de peixe e passaram a viver dentro de água.
São estas sereias as mais conhecidas na iconografia medieval, ainda que também se conheçam as aladas, simbolizando a tentação da luxúria e a vaidade, motivo pelo qual se representam com um pente e um espelho na mão.
Nos capiteis e mísulas aparecem muitas vezes com caudas bífidas, por vezes mostrando o sexo, numa associação à figura da grande prostituta tal como o pente e o espelho também e tornam símbolos da barregã apocalíptica.
Na tradição alquímica o leite das sereias possuía propriedades mágicas favorecendo o rápido crescimento dos heróis. O tema aparece no romance de Guilherme de Palermo, datado do século XIII e a própria fada Morgana se encarregava de o recolher e levar ao cavaleiro. O mesmo se passou com o gigante Gargantua de Rabelais que também preferiu leite de sereia ao materno, com os resultados que todos conhecemos.
A consequência mais curiosa desta crença reflectia-se nos chamados caminhos brancos ao longo do mar que os marinheiros bretões tanto temiam, feito de leite de sereia, como réplica da Via Láctea celeste.
É precisamente em torno desta simbologia da “Viagem” e de todas as tentações que lhe são inerentes como fundo iniciático que se pode ser entendida a curiosíssima tradição de se figurarem sereias junto aos pés de S. Cristóvão quando este faz a travessia ao menino Jesus.
S. Cristóvão, o gigante oriental que pertenceu ao exército romano e ao qual se associam os mitos e iconografias mais incríveis como a de canibal ou cinocéfalo e a quem se rezava para protecção dos efeitos malignos da Canícula , neste caso na versão mais ortodoxa, como o patrono dos viajantes.
Segundo a lenda o santo ajudou um dia um menino a atravessar um rio, transportando-o às costas de uma margem para outra. A meio da travessia foi sentido aumentar o peso da criança, ao ponto de quase não conseguir andar. Chegado a custo a bom porto o menino revelou-lhe a identidade - era Cristo e levava o globo na mão - o peso que ele sentiu deveu-se ao facto da criança transportar com ela os pecados do mundo.
Para acentuar este efeito de tentação que S. Cristóvão sofreu, na iconografia dos finais da Idade Média torna-se costume acrescentar uma série de serpentes marinhas e sereias no rio enrolando-se-lhe nas pernas. A escala minúscula e a mistura com outros peixes por vezes coroados como divindades aquáticas fazem lembrar os velhos cortejos marinhos da tradição greco-latina e só por muita ingenuidade do olhar não se tornariam picarescos.
Mas a ingenuidade comanda muitas coisas, mesmo as “verdadeiramente vistas”. Como já referimos, o próprio Cristóvão Colombo assegurou aos Reis Católicos as maiores maravilhas que viu “ás portas dos Paraíso Terrestre” e sabiamente também assegurava que mais fabuloso seria ouvir contá-las que vê-las. O certo é que Frei João dos Santos no relato Etiópia Oriental e Vária História de Coisas Notáveis do Oriente, publicado em 1609 ainda conta histórias de sereias que os nativos do Índico tão bem conheciam-
“Quinze léguas de Sofala estão as ilhas das Boccicas ao longo da costa para a parte sul, no mar das quais há muito peixe-mulher, que os naturais das mesmas ilhas pescam e tomam com linhas grossas e grandes anzóis com cadeias de ferro feitas somente para isso, e da sua carne fazem tassalhos, curados ao fumo que parecem tassalhos de porco. Este peixe tem muita semelhança com os homens e mulheres da barriga até ao pescoço, onde têm todas as feições e partes que têm as mulheres e homens. A fêmea cria os seus filhos a seus peitos que têm propriamente como uma mulher. Da barriga para baixo, tem rabo muito grosso e comprido, com barbatanas como cação. Têm pele branca e alva pela barriga e pelas costas áspera mais que a de cação. Têm braços mas não têm mãos nem dedos senão umas barbatanas que lhes começam dos cotovelos até à ponta dos braços. Têm um disforme rosto espalmado, redondo e muito maior que de um homem, porque tem a boca muito grande, semelhante à boca de uma raia, e os beiços mui grossos e derrubados, como beiços de lebreu. Têm a boca cheia de dentes, como dentes de cão, quatro dos quais, se são as presas, são muito estimados, e deles fazem as contas a que chamam de “peixe-mulher”, e dizem que têm muita virtude contra as almorreimas (hemorróidas) e contra o fluxo de sangue, e trazem-se para isso junto da carne. Têm as ventas do nariz como as de um bezerro, mui grandes. Chamam-lhe “peixe-mulher” e não “homem” porque nas feições do corpo têm mais semelhanças de mulher que de homem”.
E no final da minuciosa e “realista” discrição, para que não haja dúvidas, acrescenta: “Este peixe não fala nem canta, como alguns querem dizer, somente quando o matam dizem que geme como uma pessoa; não tem cabelos no corpo nem na cabeça. Eu cuido que estas devem ser as sereias e tritões que os Antigos fingiam... (...) que atraíam a si todos os navegantes daquele mar, de tal maneira que enlevados com a sua música, se descuidavam das embarcações( ...) e davam à costa e se perdiam, de cuja perdição as sereias tinham muito interesse”.
(edição Alfa, 1989, vol. I, pp.75-76)
Como se retira do relato, sereias destas realmente só para enchidos... Ainda assim, noutra relação tenebrosa de Fernão Cardim (1549-1625) [Tratado da terra e gente do Brasil], estes monstros marinhos que assombravam os índios brasileiros, apesar de serem tão horrendos que muitos morriam de pasmo só de os ver, ainda mantêm alguma estranha e desajustada volúpia de outras eras. Quando apanhavam as suas presas ainda os abraçavam e beijavam e apertavam de tal forma desejosos que como as velhas e cúpidas hárpias acabavam por deixar em pedaços os frutos dos seus desejos.
Imagens:
1-Instalação de Salvador Dali- 1939
2-Matthey Barnet, Cremaster 4, 1997; idem,
3-Ulisses a ser tentado pelas sereias, cerâmica grega
4-Hárpia a morrer de dor depois de matar um homem e vendo reflectida na água a sua face humana, fresco em Viena, c. 1500- 1530
5-Sereia- misericórida de cadeiral da Igreja de Saint Sulplice, Diest, 1491
6-Cadeiral da catedral de S. Pedro, Colónia, séc. XIV
7-Sereia a amamentar, idem
8 e 9-S. Cristóvão com sereia, fresco, Zwickenberg, Viena, c. 1490 ; 1500; detalhe
10- mulher-peixe in João Montecuoloo CAVAZZI, Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola [Bolonha, 1687], tradução, notas e índices pelo P.e Graciano Maria de Leguzzano, 2 vols., Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1965.
consultar:
- Fernão CARDIM, Tratado da Terra e Gente do Brasil, transcrição do texto, introdução e notas por Ana Maria de Azevedo, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997
- António Luís FERRRONHA; Mariana BETTENCOURT, Rui LOUREIRO, A Fauna Exótica dos Descobrimentos, Edição Elo, 1993
Claude GAIGNEBET, J. Dominique LAJOUX, Art profane et religon populaire au Moyen Âge, PUF, Paris, 1985
- Frei João dos SANTOS, Etiópia Oriental e Vária História de Coisas Notáveis do Oriente, Edições Alfa, Lisboa, 1989
-Para a miscigenação das lendas das sereias no folclore português (particularmente na tradição de Cabo Verde) ver: Fernando de Castro Pires de LIMA, 1908-1973), [prólogo de Marañón, Gregório, 1887-1960]. A sereia, Porto Editora, Porto, 1952
Tinha prometido que não ia falar nestas coisas mas fraquezas estéticas quando atacam dão nisto e uma verdade é uma verdade. O meu caro Lutz que me perdoe mas acaba de ser destronado pelo template masculino com mais estilo na blogosfera- o do nosso querido macguffinho.
Se fosse homem também queria um template assim!
a Cris está a recordar de novo o “nosso” Bresson
o melhor ainda é ficarem com a Adelita que o meu compadre revolucionário me ofereceu
clique na imagem para ouvir
Y si acaso yo muero en la guerra,
Y si mi cuerpo en la sierra va a quedar,
Ahy, adelita, por Dios te lo ruego,
Que por mis huesos no vayas a llorar
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Isto de ter compadres mexicanos e blogosféricos sem serem da Praça de Londres não é para qualquer uma ...
“;O))
"este vive do ar, e está à mercê de todas as aves; e para ficar mais a salvo, voa por cima das nuvens até encontrar o ar tão fino que não possa suster pássaro que o persiga. A esta altura só chega quem pelos céus é autorizado, é aí voa o camaleão" -
símbolo do homem contemplativo, como dizia Santo António dando "colorido" à "sabedoria desnuda e simples" dos sermões- este animal vive do ar tal como o homem contemplativo vive da doçura espiritual da oração
imagem: Albertus Seba's Cabinet of Natural Curiosities,1731
Nota: é claro que o camaleão do grande naturalista Seba nada tem a ver com a lenda
Esta foi a Idade do Ouro, o tempo perfeito incorruptível em que não existia procriação pois os seres nasciam do solo-numa associação ao mito de Cadmus e todos viviam numa eterna primavera em cuja felicidade se deixaram adormecer.
Depois, o movimento de balanço foi progressivamente retardando até se imobilizar e o mundo balançou em sentido inverso, entrando no tempo de Zeus (o filho temido que destronou Cronos) e em cujo tempo nós vivemos.
A noção de balanço pendular do Tempo continuou a repercutir numa série de tradições populares que se concentram de forma paradigmática nas doze badaladas da noite de Natal como um momento de passagem para o Além. Quando chega a meia-noite a porta dos dois batentes abre-se lentamente para esse tempo mítico até soarem as 6 primeiras badaladas e depois volta-se a fechar-se inexoravelmente até terminarem as seis últimas.
Os dias que se seguem ao Natal mimam este momento como se fossem doze pequenos meses de tempo de retorno à Idade do Ouro, ao governo de Cronos- o tempo da eternidade em que os meninos já nascem sábios, comandando um mundo idílico dessa Idade pré-humana.
Nestes dias tudo devia ser invertido tal como o balanço de retorno pendular. Era um momento de escatologia de Festas de Loucos e Carnavais em que os dias se vivam como noites e as noites como dias. As vigílias ganhavam a dignidade festiva e só pela madrugada é que se recolhia à cama, pois o próprio Sol também deveria erguer-se a Oeste e pôr-se a Nascente, assim como a missa devia ser dita às avessas e a Epístola lido no lugar do Evangelho.
Em posição simétrica e inversa, o solstício de Verão celebrava-se no Sol da meia-noite, a que se seguia a invertida festa da noite do meio-dia numa síntese dos dois grandes momentos da purificação e renovação: o fim da Canícula de Verão e o solstício de Inverno.
Era também durante este breve momento de supressão do tempo que se acreditava que os ursos davam uma volta no sono hibernal, fazendo com que a pele se revirasse do avesso, de forma a evitar o envelhecimento e a magreza. Plínio o Velho afirmava mesmo que toda a gordura conservada em potes aumentava de volume durante este tempo de abundância.
Na tradição popular dizia-se que o berço do menino de Jesus estava a ser embalado durante as doze santas noites, no final das quais o menino já se encontrava pronto para andar pelo seu próprio pé.
Por esse motivo só se desmontava o presépio no dia da troca de presentes ou dos Reis Magos, altura em que as crianças viam o berço vazio do menino Jesus e para as consolar eram presenteadas com pequenos doces em forma de berço.
Estas lendas tinham paralelo no Corão, no embalar do sete jovens santos de Éfeso que segundo a lenda foram mártires cristãos fechados numa gruta e mantidos adormecidos durante centenas de anos à custa do balançar divino.
A lenda também teve os seus pequenos remoques satíricos. Uma das explicações para o riso Pascal, que a todos atacava, é contada Por Jaques de Voragine teve por protagonista o rei Eduardo o Confessor de Inglaterra. Um dia, durante a missa Pascal, o monarca entrou numa espécie de transe e desatou às gargalhadas perante a estupefacção geral. Passados uns momentos voltou a si e explicou que o espírito tinha sido levado para um outro Tempo no Além, e ele estava a rir-se porque acabara de ver Deus a deitar pelo berço fora os sete santos de Éfeso, ao virar o balanço do Mundo.
O riso Pascal mais não era que o culminar deste tempo invertido em que os disparates das crianças e dos loucos permitiam que a verdadeira sabedoria fosse reposta de forma primordial. Por este motivo também era costume representarem-se os putti da Idade de Outro com máscaras ou faces de velhos.
Numa das misericórdias do cadeiral da Sé do Funchal pode ver-se uma figurinha com corpo de menino e cabeça de velho que tapa a os ouvidos enquanto anda. Tudo indica que seja uma alusão ao dito "fazer orelhas moucas a falas vãs", ou evitar os "pecados das orelhas"m neste caso sob a forma do menino sábio que tudo tem a ensinar aos comuns mortais sujeitos a um tempo impuro.
imagens:
-Lucas Cranach, A idade do ouro
-Cadmus a semear os dentes do dragão de onde nascem os spartoi. Finais séc. CV, iluminura de versão das metamofoses de Ovídeo.
-os sete santos de Éfeso, pintura bizantina
-misericórdia cadeiral do Funchal, menino-velho a tapar ouvidos (pecados de orelhas)
ver: Claude GAIGNEBET, J. Dominique LAJOUX, Art profane et religon populaire au Moyen Âge, PUF, Paris, 1985
Vindo de quem vem só pode ser uma honra.
Um terceiro lugar em tão simpática companhia vale por tudo. Ao lado da menina triciclo feliz e dessa montanha mágica (que tantas vezes penso que anda injustamente esquecida cá no Cocanha) não podia ser melhor!
Não vamos atribuir prémios porque ia ser muito complicado, mas sempre fica o registo dos dois blogues que podiam ter batido tudo em matéria de nome criativo se seguissem os enganos disléxicos cá da casa ou os do maradona:
A grande abóbora palatina e o não menos triunfal margens de ferro
E um bom Natal para todos
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Acrescentos-
Isto hoje é só prémios, agora foi a simpatia do nosso jpt-Ma-Schamba que se lembrou de duas gandulices à Wilson Brasil “:O))
Voltando à questão e aos que rondavam o Paraíso Terrestre: se pela boca morre o peixe, pela parcimónia se detectava o casto cristão em potência, ainda que não fosse lá muito viável, como era o caso dos ástomes de boca tão pequenina que só por uma palhinha consguiam beber uns sumos.
Como conta Plínio no Livro VII da História Natural, já Megástenes os havia descrito de corpo todo coberto de pele e praticamente sem boca, pois bastava-lhes o perfume das maçãs ou outro tão doce que pairasse no ar para viverem sadios e alegres de ventre bem perfumado. Quando tinham de partir em viagem levavam sempre um saquinho de raízes e flores perfumadas para não lhes faltar alimento pelas narinas.
De tão frágeis que eram, despertavam tal comisseração nos viajantes ocientais que deles se abeiravam que até os tentavam alimentar por palhinhas, como conta Mandeville no livro das Maravilhas.
É claro que toda esta sensibilidade fazia deles umas autênticas flores de estufa- um ligeiro cheiro mais nauseabundo e lá se iam os ástomes desta para melhor à espera de um paraíso de Chanel, possivelmente.
Um défice da natureza era sempre lido como um prodígio secreto, neste fascínio pelas lendas de um Oriente tão temido quanto apelativo. Recorda-nos a representação egípcia do jovem deus Harpocrates- com os dedos junto ao pequeno orifício bocal fazia shiuuuuu, remetendo ao silêncio todos os segredos que devem ficar bem guardados.
Rabelais não esqueceu este exemplo quando Pantagruel se encontra com Gaster, o primeiro grande mestre de todas as artes. Com ele residia a velha e pacífica Penia-a deusa da pobreza, mãe das noventa e nove musas por quem Porus, o deus da abundância, nutria devoto amor.
A Gaster faltavam as orelhas e, assim sendo, como constata Pantagruel, reinava impiedoso e inflexível, sem que alguém tenha tenha conseguido persuadi-lo de alguma coisa.
Frágil como os que se alimentam de perfume, mas sem se sujeitar a influências, o segredo do gosto também será sempre este- castidade nas capelinhas, poucas falas e orelhas moucas à plateia...
imagens:
detalhe do mapa-mundo de Ebstorf (original datado de 1239) representação das raças fantásticas incluindo os ástomes
- ástome a ser alimentado- Livro das Maravilhas de Mandeville (in Albert Schram, Der Bilderschmuck der Fruhdrucke, Leipzig, 1921, vol. iV,(de acordo com gravuras da 2ªedição de Anton Sorg, Augsburg, 1481)
- Harpocrates, filho de Serapis e Isis, Begram, Kapisa, Afganistão, Museu de Cabul
ver: Claude KAPPLER, Monstres, Démons et Merveilles à la fin du Moyen Age, Payot, Paris, 1980
A avidez do desejo e do olhar que cobiça testemunhava este poder de absorver pelos olhos as imagens externas que se moldavam depois no interior do corpo ao embrião.
Este o tema encontra-se nos contos populares em torno dos meninos-animais, produtos de enfeitiçamentos entre bichos e da rapariga bestializada que não controla os desejos e tem relações com um animal.
Inserem-se entre contos de carácter iniciático, muitas vezes de teor incestuoso como o da Pele de Burro, permitindo que no final do processo cada um dos personagens readquira o que lhe estava em falta. Ao animal copulador a plena masculinidade; à tonta rapariga descontrolada, a feminilidade sociabilizada- exorcizada a bestialidade tudo volta à normalidade.
A pela representa o duplo, a própria monstruosidade que se vai vestindo e despindo, numa simulação da cópula que se protela e cujo desenlace tanto é temido quanto incosncientemente desejado.
No folclore são as peles dos animais- burro, serpente, cão, javali, que transformam os humanos e os bestializam e das quais eles vão necessitar de se desembaraçar para encontrarem a sua humanidade completa- a sua alma.
Algo idêntico se processa nas mais antigas crenças e rituais em torno da placenta do feto e do recém-nascido.
O termo placenta só aparece tardiamente, em meados do século XVI- Fallopius chama-lhe placenta uterina- por semelhança com a forma de um bolo que adquiria quando expelida após o nascimento.
Com efeito, o termo até aí usado era a das peles- as secundinas- que secundam o saída da criança do útero materno. Em torno destas peles ou cascas existiam variadíssimos rituais como enrola-las em torno do corpo do recém-nascido e da sua cabeça de modo a incutir-lhe uma boa aura.
Teoricamente havia uma justificação para estas tradições e ritos: as secundinas eram o duplo do feto, competia-lhes impregná-lo de influências espirituais que este recebia pela parte da mãe- os tais desejos ou os malefícios das visões cobiçosas- mas eram também as secundinas o seu duplo anímico que lhe oferecia a individualização.
Compreende-se melhor este papel das membranas como duplo. Ligado ao corpo materno pelo cordão umbilical, seguindo rituais variados que ainda hoje se realizam entre diversos povos, como sucede entre os índios da Amazónia.
Para estes, o recém-nascido não tem identidade antes de se fazer aparecer- É um feto-“o que estava a ser feito"; o que estava a ser encorpado” e mesmo no momento do nascimento não é imediatamente aceite como humano.
Pode ser disforme e monstruoso e nesse caso é imediatamente enterrado, mas mesmo que o não seja necessita de passar por um ritual de corte do cordão e separação das secundinas. Essa tarefa cabe a um parente do pai que vai assumir a condição do não-humano e é ele que, ao cortar em dois o nascituro- o duplo da secundina e a criança que fica desprotegida e, a partir daí necessita de cuidados- permite a sua identidade. depois deste sacrifício do duplo, o que era feto apresenta-se autónomo em relação ao duplo- a placenta e está em condições de se integrar no género humano que o recebe.
A posição perante as características das secundinas vai evoluindo entre a magia e a progressiva tendência para a sua materialização. A teoria dos simulacros de Lucrécio já tinha dado o primeiro passo ao considerar que os duplos eram apenas formas materiais. No entanto, ele próprio ainda se socorre do exemplo das peles- membranas dos bezerros à nascença, ou da pele da serpente que é largada no topo das árvores, para as associar aos duplos materiais- emanações visíveis e palpáveis dos corpos que existem na natureza.
É nesta teoria que Leonardo da Vinci se inspira para encontrar uma explicação para a alma da criança dentro do copo materno. Leonardo está a meio caminho entre a tradição mágica e a explicação mecanicista. O humanista utiliza os estudos práticos de anatomia para defender a ideia da existência de uma alma para dois corpos, fazendo transitar para dentro do corpo as crenças mágicas do tradicional pode mágico do duplo. No interior do útero os espíritos dos desejos maternos transmitem-se ao feto por meio do cordão umbilical, impregnado-o de marcas que o artista não explica de forma materialista.
“A Natureza não necessita de contrapeso quando cria membros adequados ao movimento do corpo dos animais mas põe lá dentro a alma do corpo que os forma, quer dizer, a alma da mãe, que constrói, primeiro, no interior do ventre, a forma do homem e, chegado o momento desperta a alma destinada a habitá-lo. Ao princípio a alma fica em estado dormente sob a tutela da alma da mãe que a alimenta e lhe dá vida através do cordão umbilical e as secundinas e o cortilédones prendem a mãe à criança. Eis por que um apetite um apetite, um desejo muito forte, um temor que a mãe sinta, são mais fortemente sentidos pela criança do que pela mãe”.
Só com Descartes a alma é separada do corpo, unificando-se na substância pensante tudo o que até aí estava disperso sob o efeito dos espíritos autónomos. O problema do duplo que tanto o atormentou, bem patente na escolha de uma imagem de Durer representando duas irmãs siamesas para capa do Tratado do Homem, é deste modo resolvido. A noção de corpo máquina não aceita a tradição mágica dos duplos, remetendo-os a eles e a todos os erros e enganos para a capacidade da imaginação. Com este centralização na substância pensante deixam também de ter sentido os próprios monstros que passam para o estatuto de meras ilusões.
Teoricamente, é claro, já que na prática tudo será bem diferente...
imagens:
-a deusa da heresia (com peles de burro e outros animais e um falo entre os dedos- relação com as heresias cátaras)A Eisenhoit,1580
- A morte de Procris, Piero di Cosimo, c.1500
- Cadeiral da igreja de S. Pedro, Saumur, mãe e recém-nascido, sec. XV
- feto dentro di útero, Leonardo da Vinci
- gémeas siamesas Elizabeth e Margareth, Durer, 1512, gravura usada por Descartes no Tratado do Homem, 1664
Ver: Les Carnets de Léonard da Vinci, T. I, Gallimard, Paris, 1942
José GIL, Monstros, Quetzal Editores, Lisboa, 1994
Pois bem, que fique claro, aqui no Cocanha o grande símbolo pernicioso que não entra é a efígie de Afonso VII de Castela.
Morte aos primos traidores!
Albatross! Albatross!
Viva Portugal!
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confusos? esperem pelos próximos episódios
Dirige-se, do mesmo modo, a outros, para testemunhar que o paganismo e outras iconoclastias incomodaram tanto os templos medievais como o espírito que nos norteia.
As igrejas também eram isto- uma autêntica Bíblia onde nenhum factor da vida era excluído de representação. Misturando tradições populares com eruditas, religiosas com as mais profanas sátiras e licenciosidades, os cadeirais de coro foram os objectos preferidos de todas as fúrias puristas e purificadoras. Primeiramente amputando-lhes detalhes mais mundanos, em prol de reformas de costumes; depois em nome mais alto e bem mais moderno - o da invasão da Razão iluminista que os queimou por inteiro, sempre que lhes deitou a mão.
Este sim, foi o grande martírio que a arte também sofreu às mãos dos mais contraditórios zelos e outros desmandos sempre excessivamente espirituais.
imagens:
acrobacias- catedral de Colónia
jovem dançante- catedral de Colónia
amantes- catedral de Colónia
rapariga a tirar as cuecas- antiga Colegiada de de Saint-Cernin, Auvergne
menino a aprender a andar no triciclo, Bruges, Igreja de Saint Sauveur
cena de clister, Bruges (museu)
cena homossexual- beijo do demónio- cadeiral de Oviedo
julgamento Final- cad. Catdral de S. João em Bois-le-Duc (Brabante)
louco, cadeiral de catedral de Colónia
herege agrilhoado,mouro a fazer salamaleque,nobre pensativo-
cadeiral do mosteiro de Santa de Crus de Coimbra
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e se com esta salganhada de dedicatórias não acabar o Cocanha deslincado, só pode ser porque o espírito natalício ainda é levado muito a sério
ehehehehehe
Cilindrada, completamente cilindrada com isto tudo. Ainda assim, vou tentar lavrar o meu protesto por meio de uma palhinha, enquanto não chega o guindaste
Eu estou de acordo. Estou de acordo que se aparecer pela frente um JPP a falar em “Conflito Civilizacional” ou em “ameaça aos grandes valores da Civilização Ocidental”- é de se lhe mandar logo com um “anel de Lebenswelt deprimido, marginal, atópico” na mona. Está certo, foi bem pedido. E então para aquelas variantes grandiloquentes que também escrevem nos jornais e que falam logo em 3 vias de ramificação do terrorismo islâmico, nada melhor que outro pedregulho de notas de rodapé.
Até aqui estamos de acordo, é combate justo.
Só não entendi- senhor- e bem esborrachada fiquei, porque motivo se há-de apanhar com o mesmo calhau se colocarmos perguntas básicas. Aquelas que um espectador ou um mero comum mortal, a quem fizeram explodir os carros ou destruíram a escola primária, é capaz de fazer como eu fiz:
“mas quem foram eles?”
Aí é que a resposta me abafou.
A esses, tal como aos do Conflito Civilizacional- que parece que na verdade são os mesmos disfarçados- pelos visto há que mandar-lhes logo com essa do “vocês está a dar demasiada importância aos factos”.
A crescentando - "olhe meu caro, quer saber quem foram? isso diz você que quer saber mas eu bem o topo... pois fique sabendo que, como dizia François Dubet e Stéphane Beaud, esse não passa de um uso depreciativo do adjectivo teórico e não julgue com perguntinhas de caca me arraste para essa classificação".
Ok, na situação em que me encontro também prometo que não tento arrastar para mais nenhuma realidade factual. Quanto mais não seja porque nem desta realidade bem escura me consigo esgueirar para fora. E qualquer tentativa ainda podia ser lida como mais um truque para que se “debata, dirima razões e formas de prova a partir das suas categorias de significação”, isto tudo com o malvado intuito de sorrateiramente se querer «corrigir e provar as falácias do [seu] argumento”»
Está certo. Os factos são uma coisa lixada. Eu por, exemplo, ainda não consegui prescindir deles. E, por falar nisso, tenho ali no escritório uma prendinha deliciosa que me chegou hoje pelo correio- La Chiennne do Renoir, um filme alegadamente genial a preto e branco.
Mal chegue o guindaste, acho que não resisto e ainda vou fazer uma última desfeita-“ à velha e caduca antinomia teoria-prática”.
Os senhores François Dubet e Stéphane Beaud que me perdoem o atrevimento mas tenho de vê-lo e tirar a prova se é mesmo a preto e branco.
Vaidades das Alegorias- Instalação de Douglas Gordon
Original-
Pietro Perugino, S. Sebastião, com explícita assinatura na flecha inserida no pescoço: "Petrus Perusinus pinxit" como o autor costumava fazer e que aqui foi lido por Gordon como um velado auto-retrato do pintor
1493-94
Têmpera, oleo em madeira, 53,5 x 39,5 cm
Museu Hermitage, S. Petersburgo
Versão de DG-
cópia digitalizada do original - mais uma vaidade de mão. Mais uma alegoria sabotada sem verso nem reverso.
Douglas Gordon’s The Vanity of Allegory," Julho 16-Setembro. 10, 2005, Guggenheim, Berlim
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[private joke] Não há nada como coisas destas e umas boas doc marten's para vencer abismos ideológicos “:O)))
Miguel Sousa Tavares- a culpa não é nossa
Depois de enunciar as diferenças significativas entre as mulheres da época e as do tempo das avozinhas de outrora, enaltecendo os mais variados ramos em que as mulheres se destacavam, justifica também o papel de fada-do-lar tão bem ilustrado pela cara-metade do
“Mas ao seguirmos de perto o triunfo alcançado pelas mulheres de hoje, empenhadas em demonstrar que quando o ensejo ou a vocação surgem, dispõem realmente de largos recursos para vencer, assalta-nos o vago terror de a vermos desertar das suas funções naturais desdenhando a sua missão puramente feminina, abandonando por fim as ocupações do lar.
O perigo, porém, é na realidade menos grave do que se afigura ao primeiro exame. O sentimento da sua feminilidade por muito que ela se encontre em conflito com o meio onde as circunstâncias a conduzem, subsiste sempre no espírito e na consciência da mulher. Pode aturdir-se um instante entre o fragor das forjas, o bater dos ferros, o arfar dos motores, o sibilar dos ventos; mas lá surge o momento em que se lembra das rendas, do conforto do lar, do sorriso do homem amado, quiçá do carinho dos filhos. E ei-la nostálgica da vida simples, descuidosa, serena, da sua casa onde ela é e será sempre a soberana. Então, sem mesmo se aperceber de que obedece mais a uma necessidade instintiva, do que às exigências do equilíbrio doméstico, ela trocará alegremente a chave de tubos ou a chave de porcas pela agulha, e em vez de poisar as mãos delicadas no aro polido do volante, escondê-las-á com muito maior graça e propriedade, nas peúgas do marido, carecidas dos pontos que só ela sabe tecer, a exemplo do que faz a esposa do primeiro magistrado da América do Norte (...)”
-E tinha toda a razão. Realmente, com esta febre do sucesso e do estrelato, anda para aí muita dama que já nem mãozinhas tem para as porcas, quanto mais para as peúgas do marido..
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foto:"com a mão na porca"- M.elle Andrée Peyre afinando o motor do seu aero, companheiro dilecto de aventuras e perigos
* bacorada da responsabilidade da casa