Mas não será acerca destas nem das variantes “tritónicas” de Matthey Barnet que vamos hoje falar.
Por agora volta-se aos tempos mais antigos quando os viajantes ainda temiam mais o canto híbrido das mulheres-peixe ou pássaro do que o da brigada de trânsito.
Com efeito, as sereias da mitologia grega faziam parte, juntamente com as hárpias da espécie temível dos encantamentos femininos. Mas ainda assim as sereias não eram tão cruéis como as hárpias/euménides que raptavam os corpos dos mortos para usufruírem dos seus prazeres, nem iam matando o rei dá Trácia à fome, roubando-lhe todas as iguarias.
Mas já tiveram penas e voaram e foi assim, como pássaros agoirentos a cujo canto os marinheiros não conseguiam escapar, que Ulisses quis ser tentado amarrando-se ao mastro do barco. Perderam as penas por vingança das musas que lhes roubaram as vestes aladas. A partir daí ficaram privadas de voar, ganharam as caudas de peixe e passaram a viver dentro de água.
São estas sereias as mais conhecidas na iconografia medieval, ainda que também se conheçam as aladas, simbolizando a tentação da luxúria e a vaidade, motivo pelo qual se representam com um pente e um espelho na mão.
Nos capiteis e mísulas aparecem muitas vezes com caudas bífidas, por vezes mostrando o sexo, numa associação à figura da grande prostituta tal como o pente e o espelho também e tornam símbolos da barregã apocalíptica.
Na tradição alquímica o leite das sereias possuía propriedades mágicas favorecendo o rápido crescimento dos heróis. O tema aparece no romance de Guilherme de Palermo, datado do século XIII e a própria fada Morgana se encarregava de o recolher e levar ao cavaleiro. O mesmo se passou com o gigante Gargantua de Rabelais que também preferiu leite de sereia ao materno, com os resultados que todos conhecemos.
A consequência mais curiosa desta crença reflectia-se nos chamados caminhos brancos ao longo do mar que os marinheiros bretões tanto temiam, feito de leite de sereia, como réplica da Via Láctea celeste.
É precisamente em torno desta simbologia da “Viagem” e de todas as tentações que lhe são inerentes como fundo iniciático que se pode ser entendida a curiosíssima tradição de se figurarem sereias junto aos pés de S. Cristóvão quando este faz a travessia ao menino Jesus.
S. Cristóvão, o gigante oriental que pertenceu ao exército romano e ao qual se associam os mitos e iconografias mais incríveis como a de canibal ou cinocéfalo e a quem se rezava para protecção dos efeitos malignos da Canícula , neste caso na versão mais ortodoxa, como o patrono dos viajantes.
Segundo a lenda o santo ajudou um dia um menino a atravessar um rio, transportando-o às costas de uma margem para outra. A meio da travessia foi sentido aumentar o peso da criança, ao ponto de quase não conseguir andar. Chegado a custo a bom porto o menino revelou-lhe a identidade - era Cristo e levava o globo na mão - o peso que ele sentiu deveu-se ao facto da criança transportar com ela os pecados do mundo.
Para acentuar este efeito de tentação que S. Cristóvão sofreu, na iconografia dos finais da Idade Média torna-se costume acrescentar uma série de serpentes marinhas e sereias no rio enrolando-se-lhe nas pernas. A escala minúscula e a mistura com outros peixes por vezes coroados como divindades aquáticas fazem lembrar os velhos cortejos marinhos da tradição greco-latina e só por muita ingenuidade do olhar não se tornariam picarescos.
Mas a ingenuidade comanda muitas coisas, mesmo as “verdadeiramente vistas”. Como já referimos, o próprio Cristóvão Colombo assegurou aos Reis Católicos as maiores maravilhas que viu “ás portas dos Paraíso Terrestre” e sabiamente também assegurava que mais fabuloso seria ouvir contá-las que vê-las. O certo é que Frei João dos Santos no relato Etiópia Oriental e Vária História de Coisas Notáveis do Oriente, publicado em 1609 ainda conta histórias de sereias que os nativos do Índico tão bem conheciam-
“Quinze léguas de Sofala estão as ilhas das Boccicas ao longo da costa para a parte sul, no mar das quais há muito peixe-mulher, que os naturais das mesmas ilhas pescam e tomam com linhas grossas e grandes anzóis com cadeias de ferro feitas somente para isso, e da sua carne fazem tassalhos, curados ao fumo que parecem tassalhos de porco. Este peixe tem muita semelhança com os homens e mulheres da barriga até ao pescoço, onde têm todas as feições e partes que têm as mulheres e homens. A fêmea cria os seus filhos a seus peitos que têm propriamente como uma mulher. Da barriga para baixo, tem rabo muito grosso e comprido, com barbatanas como cação. Têm pele branca e alva pela barriga e pelas costas áspera mais que a de cação. Têm braços mas não têm mãos nem dedos senão umas barbatanas que lhes começam dos cotovelos até à ponta dos braços. Têm um disforme rosto espalmado, redondo e muito maior que de um homem, porque tem a boca muito grande, semelhante à boca de uma raia, e os beiços mui grossos e derrubados, como beiços de lebreu. Têm a boca cheia de dentes, como dentes de cão, quatro dos quais, se são as presas, são muito estimados, e deles fazem as contas a que chamam de “peixe-mulher”, e dizem que têm muita virtude contra as almorreimas (hemorróidas) e contra o fluxo de sangue, e trazem-se para isso junto da carne. Têm as ventas do nariz como as de um bezerro, mui grandes. Chamam-lhe “peixe-mulher” e não “homem” porque nas feições do corpo têm mais semelhanças de mulher que de homem”.
E no final da minuciosa e “realista” discrição, para que não haja dúvidas, acrescenta: “Este peixe não fala nem canta, como alguns querem dizer, somente quando o matam dizem que geme como uma pessoa; não tem cabelos no corpo nem na cabeça. Eu cuido que estas devem ser as sereias e tritões que os Antigos fingiam... (...) que atraíam a si todos os navegantes daquele mar, de tal maneira que enlevados com a sua música, se descuidavam das embarcações( ...) e davam à costa e se perdiam, de cuja perdição as sereias tinham muito interesse”.
(edição Alfa, 1989, vol. I, pp.75-76)
Como se retira do relato, sereias destas realmente só para enchidos... Ainda assim, noutra relação tenebrosa de Fernão Cardim (1549-1625) [Tratado da terra e gente do Brasil], estes monstros marinhos que assombravam os índios brasileiros, apesar de serem tão horrendos que muitos morriam de pasmo só de os ver, ainda mantêm alguma estranha e desajustada volúpia de outras eras. Quando apanhavam as suas presas ainda os abraçavam e beijavam e apertavam de tal forma desejosos que como as velhas e cúpidas hárpias acabavam por deixar em pedaços os frutos dos seus desejos.
Imagens:
1-Instalação de Salvador Dali- 1939
2-Matthey Barnet, Cremaster 4, 1997; idem,
3-Ulisses a ser tentado pelas sereias, cerâmica grega
4-Hárpia a morrer de dor depois de matar um homem e vendo reflectida na água a sua face humana, fresco em Viena, c. 1500- 1530
5-Sereia- misericórida de cadeiral da Igreja de Saint Sulplice, Diest, 1491
6-Cadeiral da catedral de S. Pedro, Colónia, séc. XIV
7-Sereia a amamentar, idem
8 e 9-S. Cristóvão com sereia, fresco, Zwickenberg, Viena, c. 1490 ; 1500; detalhe
10- mulher-peixe in João Montecuoloo CAVAZZI, Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola [Bolonha, 1687], tradução, notas e índices pelo P.e Graciano Maria de Leguzzano, 2 vols., Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1965.
consultar:
- Fernão CARDIM, Tratado da Terra e Gente do Brasil, transcrição do texto, introdução e notas por Ana Maria de Azevedo, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997
- António Luís FERRRONHA; Mariana BETTENCOURT, Rui LOUREIRO, A Fauna Exótica dos Descobrimentos, Edição Elo, 1993
Claude GAIGNEBET, J. Dominique LAJOUX, Art profane et religon populaire au Moyen Âge, PUF, Paris, 1985
- Frei João dos SANTOS, Etiópia Oriental e Vária História de Coisas Notáveis do Oriente, Edições Alfa, Lisboa, 1989
-Para a miscigenação das lendas das sereias no folclore português (particularmente na tradição de Cabo Verde) ver: Fernando de Castro Pires de LIMA, 1908-1973), [prólogo de Marañón, Gregório, 1887-1960]. A sereia, Porto Editora, Porto, 1952