Voltando à questão e aos que rondavam o Paraíso Terrestre: se pela boca morre o peixe, pela parcimónia se detectava o casto cristão em potência, ainda que não fosse lá muito viável, como era o caso dos ástomes de boca tão pequenina que só por uma palhinha consguiam beber uns sumos.
Como conta Plínio no Livro VII da História Natural, já Megástenes os havia descrito de corpo todo coberto de pele e praticamente sem boca, pois bastava-lhes o perfume das maçãs ou outro tão doce que pairasse no ar para viverem sadios e alegres de ventre bem perfumado. Quando tinham de partir em viagem levavam sempre um saquinho de raízes e flores perfumadas para não lhes faltar alimento pelas narinas.
De tão frágeis que eram, despertavam tal comisseração nos viajantes ocientais que deles se abeiravam que até os tentavam alimentar por palhinhas, como conta Mandeville no livro das Maravilhas.
É claro que toda esta sensibilidade fazia deles umas autênticas flores de estufa- um ligeiro cheiro mais nauseabundo e lá se iam os ástomes desta para melhor à espera de um paraíso de Chanel, possivelmente.
Um défice da natureza era sempre lido como um prodígio secreto, neste fascínio pelas lendas de um Oriente tão temido quanto apelativo. Recorda-nos a representação egípcia do jovem deus Harpocrates- com os dedos junto ao pequeno orifício bocal fazia shiuuuuu, remetendo ao silêncio todos os segredos que devem ficar bem guardados.
Rabelais não esqueceu este exemplo quando Pantagruel se encontra com Gaster, o primeiro grande mestre de todas as artes. Com ele residia a velha e pacífica Penia-a deusa da pobreza, mãe das noventa e nove musas por quem Porus, o deus da abundância, nutria devoto amor.
A Gaster faltavam as orelhas e, assim sendo, como constata Pantagruel, reinava impiedoso e inflexível, sem que alguém tenha tenha conseguido persuadi-lo de alguma coisa.
Frágil como os que se alimentam de perfume, mas sem se sujeitar a influências, o segredo do gosto também será sempre este- castidade nas capelinhas, poucas falas e orelhas moucas à plateia...
imagens:
detalhe do mapa-mundo de Ebstorf (original datado de 1239) representação das raças fantásticas incluindo os ástomes
- ástome a ser alimentado- Livro das Maravilhas de Mandeville (in Albert Schram, Der Bilderschmuck der Fruhdrucke, Leipzig, 1921, vol. iV,(de acordo com gravuras da 2ªedição de Anton Sorg, Augsburg, 1481)
- Harpocrates, filho de Serapis e Isis, Begram, Kapisa, Afganistão, Museu de Cabul
ver: Claude KAPPLER, Monstres, Démons et Merveilles à la fin du Moyen Age, Payot, Paris, 1980