Dizia Hildegarda de Bingen, no tratado de Física que redigiu por volta de 1150, que o macaco «como é muito semelhante ao homem está sempre a observá-lo para depois o imitar. Também partilha os hábitos de outros animais mas, ambos estes aspectos da sua natureza são deficientes, pelo que o seu comportamento não é nem totalmente humano nem totalmente animal».
Esta ideia vai perdurar por muitos séculos, sendo os símios são associados à falta de razão humana, ao pecado da carne e prisão dos instintos.
Os bestiários medievais divulgam uma série de lendas e fábulas, incluindo-os como pretexto para as mais variadas sátiras da marginalia medieva.
No cadeiral da Sé do Funchal existem vários. Alguns fazem alusão ao pecado da gula— são os macacos beberrões, a emborcar sofregamente o vinho por copos e púcaros, enquanto ao lado de um deles um porco pede esmola, mostrando o rolo do atestado de pobreza.
Outro primata toca gaita-de-foles, numa alusão à provocação sexual em que os porcos costumavam levar a palma como se pode ver no portal da Sé de Lamego, a par de cenas de felatio entre meninos.
Numa mísula da Torre de Belém, o macaco é mais erudito— executa com primor alguma cantata no violino, mostrando um ar sorridente e inspirado—.
Era também comum associá-los a cenas de assédio com morcegos fêmeas, com as maminhas à mostra ou, mais explicitamente, a fazerem de médicos, colocando uns edemas no traseiro de outros bichos ou mesmo de humanos, numa alusão aos gays da época.
Noutros casos, podiam aparecer a fazer grandes cozinhados ou como ladrõezecos em fuga, como o que está no cadeiral da igreja de Montemart
As extravagantes droleries medievas tendem a tornar-se cada vez mais mordazes no período gótico. Num manuscrito iluminado do Romance de Lancelote figurou-se uma freira a amamentar um macacão, numa troça ousada às imagens tradicionais da Virgem com o Menino.
Miguel Ângelo, fortemente influenciado pelas teorias neoplatónicas da época, não os esqueceu e, numa alusão ao triunfo da morte pela Vida Contemplativa que se liberta do cárcere terreno, fez acompanhar de símios dois dos escravos inacabados do túmulo de Júlio II.
Numa variante das catalogações das raças do mundo, misturados com as lendas, os macacos são também associados aos sátiros e homens silvestres. Esta crença estava de tal modo inculcada que o próprio Rousseau continua a acreditar na possibilidade dos chimpazés e gorilas, trazidos pelos exploradores, serem espécies de homens primitivos.
Os cientistas baralham-se e continuam a usar a terminologia mítica que, por sua vez, correspondia também, à ideia de homens da selva que os povos autóctones tinham deles. O termo urang-outang, que em malaio tinha esse significado, passa a ser utilizado para descrever chimpazés entretanto apanhados como seres exóticos, no seguimento das navegações.
Ainda que os gorilas só tenham sido descritos em 1840, muito antes, o famoso Nicolaes Tulp (1593-1674), que Rembrandt imortalizou na “Lição de Anatomia”, estudou um destes primatas levado para Amesterdão.
E, macacos me mordam, se o que ele desenhou e publicou no tratado científico- Medicarum Libri Tres, não era mesmo um orangotango e dos verdadeiros...
O que quer que o bicho fosse (e o naturalismo da representação é bem maior que os que se vão seguir)Tulp teve dúvidas quanto à natureza do animal. Acompanhou-o da legenda Homo Sylvestris-Orangutangus e no capítulo dedicado aos Sátiros Índicos, desenvolve o assunto, chegando à conclusão que, no que respeita à tradição fantástica, únicos sátiros que poderiam existir eram aqueles.
Em Inglaterra, o físico Edward Tyson (1650–1708) (que por acaso é antepassado de Darwin), membro da Royal Society, já andava a procurar estabelecer paralelos entre as espécies, como no caso dos golfinhos, catalogando-os como um elo entre os peixes e os quadrúpedes, de forma a redigir uma história natural das espécies.
A ideia não era nova, muito menos a própria teoria das Idades do Mundo, onde teriam existido animais que se cruzaram com homens primitivos, extra criação divina do Edem. No De Rerum Natura, Lucrécio já havia desenvolvido essa história do mundo, sendo suficientemente divulgada e até pintada por Piero di Cosimo, em quadros que misturavam as lendas dos deuses greco-latinos com estes seres.
Tysson rendeu-se à inteligência e anatomia destes primatas e não teve dúvidas em classifá-lo como um ser a meio caminho entre um animal e o homem.
«one would be apt to think, that since there is so great a disparity between the Soul of a Man, and a Brute, the Organ likewise in which ’tis placed should be very different too.».
via Bibliodyssey
Sem saber que tinha dissecado um chimpanzé, atribuiu-lhe características mais humanas como a postura vertical. Não é certa a razão pela qual o bicho foi desenhado apoiado a uma bengala; uma das hipóteses prende-se com a necessidade de apoio em virtude das feridas que recebeu a bordo e das quais viria a morrer.
Certo é que a verticalidade não só foi acentuada, como ainda mais exagerada pelos estudiosos que se seguiram. A dada altura passou a ser comum desenhar-se um “orangotango” sempre acompanhado de bastão.
Só não foi de chapéu de coco, porque esse era mais propício ao paralelo gosto por macaquinhos vestidos e amestrados. Mas o nosso famoso cientista não se coibiu de garantir que até eles (os chimpas)preferiam as louras.
A obra vai ter enorme influência, inclusive nas Viagens de Gulliver de Jonathan Swift. Entre a fealdade dos cavalares Houyhnhnms, mas gentis e racionais e os yahoos, bestiais de face humana, não é difícil de escolher e o Swift sabia que já na altura Londres estava cheia dos segundos.
Estas confusões quanto à natureza humana da macacada vão perdurando e Foucher d’Obsonville (1734-1802) de tão entusiasmado com a hipótese, no tratado de “animais estrangeiros” chega a sugerir que se fizesse o mesmo que os indianos garantiam ser possível- cruzar um orangotango (ele também lhe chamava silvanus) com uma rapariga, a ver o que saía dali.
Entretanto, os pigmeus-gente, lá continuavam catalogados como espécie semi-humana, ainda que se constatasse que até tinham uma religião monoteísta. Apesar de Camper, que nunca acreditou na “evolução” simiesca, ter finalmente estabelecido que os orangotangos eram animais distintos do ser humano, ainda John Locke continuou convencido que o papaio do príncipe Nassau sustentava longas conversas e até era capaz de responder com pertinência racional a perguntas que se lhe colocavam.
Quanto à macacada e aos povos primitivos, ou seres fantásticos, as confusões semânticas prolongam-se e até em pleno século XX, o matulão do lúbrico bonobo foi descrito como um pan paniscus (um pequeno pã).
Está visto que o caminho inverso- do homem ao macaco- foi o passo seguinte e as teorias racistas e eugenistas chamaram-lhes um figo (ou uma banana).
Não foi preciso muito para que sobrasse característica simiesca para os negros e ainda menos para os regionalismos.
Um dos racistas-mor, particularmente inspirador do nazismo- Madison Grant- não se esqueceu dos escoceses e irlandeses, como testemunhos vivos do atraso na evolução das espécies:
«Some of its [do homem do Neerdental] blood has trickled down to the present time, and occasionally one sees a skull of the Neanderthal type. The best skull of this type ever seen by the writer belonged to an old and very intellectual professor in London, who was quite innocent of his value as a museum specimen. In the old black breed of Scotland the overhanging brow and deep-set eyes are suggestive of this race».
E, mais à frente:
«Along with other ancient and primitive racial remnants, ferocious gorilla like living specimens of the Neanderthal man are found not infrequently on the west coast of Ireland, and are easily recognized by the great upper lip, bridgeless nose, beetling brow and low growing hair, and wild and savage aspect»
Não admira que o Hitler dissesse que este livro era a sua bíblia.
The passing of the great racee New York, 1916.
via Dragão
Daqui à antropogenia de Haechel foi um passo e os netinhos de Darwin estão aí, a tentar ressuscitar a farsa, agora em nome da santidade da ciência.
.....................
ver também:
Ptolemy Tompkins,O macaco na arte,Quetzal, Lisboa,1994.
Raymond Corbey, The Metaphysics of Apes: Negotiating the Animal-human Boundary, Tilbury University and Leiden University, Cambridge University Press, 2005 online