Rainhas, princesas, santas e pecadoras até uma papisa, barbadinhas mas muito meninas houve-as para todos os gostos... Uma das mais célebres foi rainha e falsa barbada. Chamava-se Hatsepsut, era bonita e carismática, viveu no Antigo Egipto, 15 séculos antes da nossa era. Sucedeu no trono como filha predilecta em detrimento de dois irmãos varões e um meio-irmão.
Num clima conflituoso, para se impor perante os súbditos, decidiu vestir-se como um homem, acrescentando umas barbas postiças para tornar mais credível a postura a chefia de estado. E assim reinou, barbada e suserana por 20 anos, ao longo dos quais evitou revoltas por meio de inteligente propaganda, dirigiu uma expedição ao Ponto em busca de ouro, especiarias, marfim, caça a animais e árvores aromáticas.
Desconhece-se o motivo, mas o certo é que ficaram gravadas em hieróglifos relatos desta empresa, acompanhados de desenhos satíricos à rainha rival, apresentada como uma megera marreca e nariguda. Um perfeito KO de feminilidade em que as barbas saem inquestionavelmente em triunfo.
Considerava-se de origem divina, deixou um dos mais magníficos templos no Vale dos Reis e ainda aguentou em vida um feroz braço de ferro com a sua madrasta.
Diz-se que pior o pior inimigo de uma mulher é outra mulher e neste caso nem as barbas evitaram a inveja feminina. Parece que as intrigas da madrasta tiveram efeito no enteado que se preparava para reinar. Morreu envenenada pelo sucessor que tudo fez para apagar a sua memória: a sepultura foi profanada; a múmia da barbadinha egípcia desapareceu para sempre, mas a lenda ficou e nem a Bíblia a esqueceu.
Wilgeforte
Outra barbadinha por decisão própria. Neste caso as barbas cresceram-se por milagre. Wilgeforte, também conhecida por Santa Librada no país vizinho ou Liberata em França, numa das versões mais correntes da lenda, teria sido uma princesinha portuguesa, muito casta e de grande personalidade.
Contra os intentos do pai, que a queria ver casada com um príncipe pagão, a menina, que era uma devota cristã, rogou a Deus que lhe fizesse crescer umas grandes barbas em troca dos prazeres esponsais.
Deus acudiu à casta prece e fez-lhe crescer tamanhas barbichas que demoveram todo e qualquer intuito por mais viril e pagão que fosse.
O pai, enraivecido com tamanha desobediência, manda crucificar a filha que assim se torna mais uma mártir lendária.
A lenda tem raízes noutros mitos andróginos um dos quais derivado de uma interpretação errónea do “Volto Santo” de Lucca. Nesse crucifixo que existia na basílica de Lucca, Cristo aparecia coroado na cruz e vestido com uma túnica, tornando-se uma imagem muito adorada pelos romeiros. Com o curso do tempo houve uma série de fusões lendárias, acabando por se transformar numa imagem de mulher mártir, padroeira dos peregrinos.
Em virtude do carácter de auto-privação dos prazeres, o mito da Wilgeforte é clinicamente associado à anorexia.
Imaginamos que tendo em conta a suspeita ira paterna, talvez não fosse de todo descabido se viesse a tornar-se um ícone semelhante a uma Laura Palmer barbada.
De qualquer forma, João César Monteiro também a imortalizou no Vai e Vem - como mais uma das candidatas a mulher a dias de Vuvu - a apetitosa Urraca, de barbichas tamanhas que como ele dizia, talvez dessem para fazer uma trança...
“se a menina fosse sáfica fazia-se um trança bem enteiriçada, dava-se meia volta e juntava-se na passarinha...”
Papisa Joana
A lenda foi posta a correr no século XIII, mas a dita papisa teria ocupado usurpado o trono pontifício no século IX, sucedendo a Leão IV com o nome de João VIII. Segundo uma crónica dominicana, era uma jovem e bela rapariga, nascida em Mogúncia, na Alemanha, também esta de nariz muito empinado, que um belo dia decidiu disfarçar-se de homem para viver mais livremente com o seu amante.
Tomou o nome de João de Inglaterra (Johannes Anglius) e seguiu um autêntico percurso de intelectual libertária. Vai para Atenas onde desenvolve os estudos, segue depois para Roma onde leccionou o trivium numa escola frequentada por mestres de renome.
Adquiriu tal reputação intelectual que acabou por ser eleita como Papa, ocupando o mais alto cargo da Igreja durante dois anos. Se o dever pontifício foi bem cumprido, parece que enquanto mulher também não se esqueceu outras actividades mais profanas— ao fim de dois anos de coroa papal, deu à luz uma criança.
A partir daqui as lendas dividem-se. Segunda uns, morreu de parto quando ia a cavalo numa procissão em direcção à Basílica de S. Pedro de Latrão.
Noutras versões, o parto traiu-a e acabou amarrada à cauda de um cavalo e apedrejada publicamente até à morte. Nas imagens alusivas este triste final não é adoptado, preferindo mostrar-se um bizarro parto papal perante a Cúria Romana em peso.
Dizem as más-línguas que a Santa Sé é que pôs as barbas de molho e até se inventou uma bizarra cadeira com o acento furado— o estercorário— para, daí para a frente, se verificar o sexo do santo pontífice, não fosse o diabo, ou outra barbadinhas tecê-las.
Magdalena Ventura
Filhas do povo, personagens anónimas, alguma delas convertidas em monstros de feira, por muitas outras barbadas não reza a história. Uma há que foi imortalizada por dois famosos pintores.
A estranha napolitana Magdalena Ventura, casada e mãe de uma criança, apresentada como um caso milagroso de parada de horrores.
Em 1631 José de Ribera pintou-a em família, acentuando o carácter bizarro e triste e funesto destes personagens.
Goya que conheceu o quadro e sempre tivera dom para mostrar que monstros são os outros, desenhou-a cândida e alegre com o filho ao colo, deliciado com a possibilidade de brincar com as barbinhas da mãe. Só faltava que esta entoasse a velha cantilena:
“ palminhas e mais palminhas,
que a mamã dará maminhas,
e o papá quando vier
dará sopinhas de mel.”
Para última, uma barbadinha progressista do início do século:
Madame Delait
Nascida em Thaon, era uma mulher moderna e emancipada que não hesitou em aderir ao clube das ciclistas da região- antecipando uma versão mais pilosa da cançoneta: eu cá para mim não há, ai não, maior prazer que o selim e a mulher...
Pode dizer-se que também nunca lhe faltou barba para o negócio, aumentando as vendas da cafetaria que possuía, à custa de postais ilustrados da sua própria deformidade. À custa dos excessos peludos ainda atingiu a fama internacional, ganhando mesmo o prémio da Francesinha Barbada, disputado no hipódromo de Vichy.
É claro que actualmente estas barbadinhas não precisam de ser mulheres nem terem barbas, e vice versa- eles também podem ser elas, barbas e sexo à parte.
É que essa é uma historieta doutrinária em que a pedagogia antecipa o aparecimento de qualquer pilosidade nos meninos e meninas. E nunca se lhe poderia chamar um fenómeno monstruoso ou marginal- afinal de contas até a agenda missionária europeia recomenda o treino nas escolas, em nome da Igualdade de Oportunidades para todos.