“Em algumas províncias nossas crescem formigas com as dimensões de cachorros, com seis pés e asas, à maneira de lagostas marinhas;têm dentes dentro da boca, com os quais comem, maiores do que os dos cães e dentes fora da boca maiores que os dos javalis bravos, com os quais capturam quer homens quer outros animais. Uma vez capturados, imediatamente os devoram. E, o que é mais espantoso, são tão velozes na corrida que se julgaria, sem duvidar, que voam e, por tudo isso, nessas províncias não habitam homens, senão em lugares muito seguros e fortificados. Com efeito, essas formigas permanecem debaixo da terra desde o pôr-do-sol até à hora de terça do dia e durante toda a noite extraem ouro puríssimo e trazem-no para a luz. Mas, desde a hora de terça até ao pôr-do-sol mantêm-se à superfície da terra e alimenta-se. Depois, entram debaixo da terra para extraírem ouro. E assim procedem todos os dias. Quando anoitece, os homens descem das suas fortificações e recolhem o ouro que carregam em elefantes, hipopótamos, camelos, quimeras e outros animais de grande porte e força e transportam-no, durante todo o dia para os nossos erários. De noite, trabalham, lavram, semeiam, colhem, vão e vêm e fazem tudo aquilo que querem, pois durante o dia ninguém ousa mostrar-se, enquanto as formigas se encontram à superfície da terra e isto pela força e ferocidade dessas mesmas formigas.”

Assim se refere na lendária Carta do Preste João das Índias as estranhas formigas-leão, cuja existência lendária percorreu os tempos, desde a saga hindu Mahâbhârata , aos bestiários medievais ou relatos de viagens.

Segundo a tradição, a famosa formiga-leonina tinha a parte posterior do corpo em forma de formiga e anterior como um predador leão a que não faltava a juba nem a saciedade do rei dos animais. A lenda das mermekolion (do grego- murmêkoleôn) parece derivar de uma passagem da versão grega do Livro de Job. Jorge Luis Borges conta-a no Livro dos Seres Imaginários:

«Un animal inconcebible es el Mirmecoleón, definido así por Flaubert:”león por delante, hormiga por detrás, y con las pudendas al revés”. La historia de este monstruo es curiosa. En las Escrituras (Job, IV, 11) se lee: “El viejo león perece por falta de presa.”
El texto hebreo trae laysh por “león”; esta palabra anómala parecia exigir una traducción que también fuese anómala; los Setetna recordaron un león ara´bigo que Eliano y Estrabón llaman Myrmex y forjaron la palabra “mirmecoleón>.
Al cabo de unos siglos, esta derivación se perdió. Myrmex en griego, vale por “hormiga”; de las palabras enigmáticas. «El “león-hormiga” perece por falta de presa» salió una fantasia que los bestiários medievales multiplicaron: «El Fisiólogo trata del león-hormiga; el padre tiene forma de león, la madre de hormiga; el padre se alimenta de carne, ya la madre de hierbas. Y éstos engendran el león-hormiga, que es mezcla de los dos y que se parece a los dos, porque la parte delantera es de león, la trasera de hormiga. Así conformado, no puede comer carne, como el padre, ni hierbasm como la madre; por consiguinte, muere.»

As mutações por que passam estas fantásticas formigas-leão são tão complexas que chegam ao século XVIII associadas a libelinhas e carochas, acabando por entrar no sistema classificativo de Lineu.

Pelo meio as confusões foram muitas. No século XIII, Bartolomeo Anglico refere as formigas-leões no tratado De Proprietatibus Rerum. Ao descrever um animal muito grande, semelhante a uma aranha, chama-lhe mirmiceon, confundindo-as com as aranhas myrmecion, nomeadas por Plínio Na Historia Natural. Mas explica que o nome destes animais deriva da facto de irem à caça de formigas como “leões”.
Claude Perrault, nas Memórias para servirem a História Natural dos Animais, recorda estas etimologias para justificar o nome do camaleão. Também ele é um leão a caçar insectos, como as formicaleon a caçarem formigas
Em alguns manuscritos medievais estes seres também aparecem como formigas-cão, tendo em comum a lenda serem incansáveis escavadoras de ouro, matando todo o intruso que dele se quisesse apoderar.



Em 1996, Marlise Simons, num artigo do New York Times, contou que o mistério destas formigas escavadoras de ouro estava resolvido . Segundo a autora, numa região recôndita dos Himalaias, entre a Índia e o Paquistão, o entomologista Michel Peissel e outros exploradores encontraram umas marmotas que traziam para a superfície pedaços de ouro misturados com terra, ao escavarem os seus túneis. Ainda hoje existem índios da tribo Minaro que asseguraram que há gerações que colectam ouro por este processo.
Sendo assim seria às marmotas que Heródoto se referia ao descrever as formigas leão como animais de tamanho superior ao de uma raposa mas mais pequeno que um cão.
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Para seguir os trâmites classificativos da formiga-leão, consulte este site

Carta do Preste João das Índias. Versões medievais latinas, prefácio e notas de Manuel João Ramos, trad. Leonor Buescu, Assírio & Alvim, Lisboa, 1998.
Jorge Luís BORGES, El libro de los seres imaginários, Alianza Editorial, Madrid, 1999.

Druce, G. C. 1923. [Myrmekoleon] or Ant-Lion. Pp. 347-363 in The Antiquaries Journal. Vol. III, No. 4. Oxford University Press, London.

Kevan, D. K. McE. 1992. Antlion ante Linné: [Myrmekoleon] to Myrmeleon (Insecta: Neuroptera: Myrmeleonidae [sic]). Pp. 203-232 in Current Research in Neuropterology. Proceedings of the Fourth International Symposium on Neuropterology. Bagnères-de-Luchon, France, 1991. M. Canard, H. Aspöck, and M. W. Mansell, eds. Toulouse, France.

Simons, Marlise. 1996. 'Gold-Digging Ants' mystery seems solved, after bugging scholars for centuries. New York Times, 25 November.

imagens:
1- um ladrão de ouro a escapar de uma formiga leão, montado num camelo fêmea, enquanto o macho é devorado pelas formigas.De Rebus in Oriente Mirabilibus, a late 10th Century Anglo-Saxon and Latin MS (British Library, London).
2-formiga-leão- bestiário francÇes de Guillaume le Clerc (Bibliothèque Nationale, Paris, MS fr 14969, folio 17).
3-mirmicaleon- mapa-mundo de Ebstorf, c. 1213 et 1373
4-Etiópia- Le Livre des merveilles du monde ou Les Secrets de l'Histoire naturelle. Cognac, Robinet Testard, c. 1480-1485.BNF., Manuscrit sur parchemin (95 ff., 30,5 x 21 cm).
5-Saltério Queen Mary,séc. XIV, (British Library, London, MS Royal 2 B vii, folio 96)
6-marmota
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Se estiver interessado em mais curiosidades acerca de formigas espreite as respostas do Animal ao 1º teste que o Grande Educador lançou na blogosfera

4 comentários:

Uther disse...

olá zazie!
estou estupefacto com este texto! é escusado dizer que já o li várias vezes.

se não indicasses fontes tão credíveis diria que estava nesciamente estupefacto! são credíveis as fontes, não são?

zazie disse...

é verdade pois, Uther e olha que eu penso que até houve coisas mais malucas. Aquela das árvores que davam meninas- as wak-wak é um caso doido.

E parabéns pelo teu blogue. A sequência do Renoir está espantosa!

Uther disse...

obrigado zazie!

andei a pesquisar sobre as wak-wak, as árvores que dão meninas, e realmente tens razão: há qualquer coisa que não bate bem nisto tudo!

mas ainda sobre as formigas leoninas, as lendas referidas são um puro divertimento quando comparadas com o seu comportamento reprodutivo: esse sim, é de arrepiar!

zazie disse...

Viva Uther,

Não conheço esse detalhe da procriação das formigas-leão. Onde é que encontraste? As fontes que eu tenho passam por Heródoto, Solinus; Estrabão; A carta de Farasmanes; Historia de preliis; Bestiários como o de Guilherme le Clerc, mais o Vincnet de Beauvais, Alberto o Grande; Santo Isidoro de Sevilha nas Etimologias; Liber Floribus; Jacques de Vitry e outros que referi. Mas a cena da reprodução escapou-me...

Beijinhos

Quanto às Wak-wak o que considero mais espantoso é a descrição do Pigafreta. O sujeito fez a viagem de circum-navegação com o Fernão de Magalhães, é incrível convencer-se que teve uma delas durante 3 dias na tenda

“:O)))