Os juízos de valor são mais surpreendentes, mas também mais pesados... quando recaem, já não sobre certas figuras de proa, mas sobre uma sociedade inteira, catalogada em bloco, sem remissão.
(...)Neste concerto, as trombetas soam todavia em uníssono para dizer todo o mal que se deve pensar desse longo período a que chamamos Idade Média; e ninguém se espanta; nem se ouve, praticamente, nenhum som discordante.
Larguíssimas porções do passado têm em geral escapado, pelo menos em França, ao desprezo e ás condenações. Jamais são postas em causa as civilizações ou mesmo as sociedades gregas e romanas, desde o momento em que Atenas se impôs no círculo das nações, até à queda do Império Romano, considerada, pelo menos nos países latinos, como uma catástrofe.
Os Romanos, cujos deploráveis costumes são tão pouco dignos de exemplo em certas épocas, são bem conhecidos, permanecem todavia como os modelos propostos para eidificação dos nossos filhos, pois Tibério, Nero, ou Calígula não conseguem fazer esquecer os Gracos e Augusto.
De resto, a exposição reduz-se invariavelmente a umas poucas façanhas, orientadas para o culto dos heróis, e não se eleva muito acima das anedotas e das lendas. Continuamos a ser incitados a estudar, de preferência, esses séculos de luzes «berços das nossas civilizações» a encontrar neles motivos para fortalecermos as nossas virtudes cívicas, para desenvolveremos o nosso amor da liberdade.
Ainda nos nossos dias, a Antiguidade, a Grécia e Roma figuram constantemente nos programas vestibulares das nossas principais escolas superiores, mas não assim a Idade Média, nem o Antigo Regime antes de 1789.
Esta opção, surpreendente mas incessatemente reiterada, é em boa parte de origem intelectual, e inscreve-se sem dúvuda numa longa tradição, a dos géneros literários. De certo modo, os heróis antigos atravessaram os tempos graças aos seus criadores. A sua recordação jamais se esbateu, muito pelo contrário, foi sendo embelezada com mil acrescentos e adereços (Eneias, Demóstenes, Alexandre, César Augusto, Marco Aurélio...).A partir do século XVI, estas figuras passaram a ser as únicas oferecidas à admiração do público. Dos nove Paladinos até então cantados pelos romances e apresentados durante as festas populares, apenas se retêm os três «antigos» gregos e romanos; os outros, os da Bíblia eos dos altos feitos cristãos (Carlos Magno, Godofredo de Bolhão), desaparecem. A partir dessa altura, todos os ciclos da epopeia cavaleiresca e da canção cortês, de Rolando a Lancelote do Lago e ao Rei Artur, são riscados dos reportórios cada vez mais ignorados, só se mantêm em raros países arredados das modas.
(...)Mais tarde, estas mesmas preferências e a sua manutenção, em detrimento de toda e qualquer outra curiosidade, tiveram sobretudo a ver com intenções políticas, ou com apriorismos ideológicos. Em muitos círculos, sobretudo em França, que dava frequentemente o tom, admitiu-se e proclamou-se que a Antiguidade proporcionava bons modelos de governo, de «República», dizia-se então, em suma, de povos amantes da liberdade.(...)
Entre estes dois tempos fortes, é a noite, são os tempos obscuros da Idade Média, a que é de bom tom não conceder qualquer crédito, salvo, aqui e além, e, relação a umas poucas manifestações marginais, a uns tantos espíritos fortes, naturalmente desconhecidos ou incompreendidos, ou mesmo desditosos (Abelardo, é claro, e alguns mais...). Tomada em bloco, esta Idade Média não é senão mediocridade.
Daí o entusiasmo com que se cantam as auroras assim que despontam os clarões primeiros dos nossos tempos modernos. Vemos neles como que o aparecimento de um outro homem, o qual- quer brutalmente, por qualquer misterioso desencadeamento do destino, quer a pouco e pouco, por uma frutuosa maturação- teria adquirido uma natureza distinta.»
Jacques Heers, A Idade Média, uma impostura, Edições Asa, Porto, 1994.
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imagem: Cristina de Pisa a escrever, mestre d'Othéa iluminista; 1404.