vai o passo dum anão
vai o rei que ninguém quis
vai o tiro dum canhão
e o trono é do charlatão” [Sérgio Godinho, o Charlatão]
Reposição repescada na Janela Indiscreta
Historieta sempre tão actual, este foi um tema inicialmente debatido na proto-blogosfera do velho Pastilhas que aqui fica agora no Cocanha
Pseudo-Intelectuais; Intelectualóides; Pseudo-Intlectualóides – que “pseudos” são esses que desvirtuam a seriedade do espírito? O que os diferencia dos verdadeiros intelectuais? Quem são os visados pela troça?Conta-se que Goebbels dizia que lhe dava vontade de sacar da pistola sempre que ouvia falar em intelectuais. Muitos ódios de estimação que estes geram mais não serão que uma forma de despeito por um poder que se pressente. Como na altura comentou o maradona, é capaz de ser preferível um pseudo-intelectual a um anti-intelectual mas também é verdade que em muitos casos são os próprios que se colocam tão a jeito que a troça até lhes faz um favor.
Na Idade Média era muito comum esta chacota aos doutores. Os óculos na ponta do nariz tanto serviam para designar a seriedade do estudo, como a ignorância de quem não entende do que fala ou a marca da loucura dos que deixam escapar a razão nesses devaneios.
Brueghel representou-os numa festa das confrarias de loucos que são criadas no final da Idade Média, com a participaçãode muitos dos senhores mais importantes da terra, dando continuação ao espírito carnavalesco do riso escatológico em que a loucura provisoriamente comanda.
Correspondem também a uma tendência progressiva para o afastamento dos festejos carnavalescos do sentido genuíno e popular das calendas de Janeiro. Nesses tempos ainda eram os próprios clérigos mais jovens quem as protagonizava, lendo os textos sagrados às avessas em missas satíricas saindo depois mascarados para a festa no adro, em grandes folias e danças, satirizando com o povo toda a hierarquia religiosa.
Na gravura, Brueghel representou os loucos confrades de óculos na cabeça, um deles mimando o escrivão, com o tinteiro e a pena, preso na máscara, acompanhado do saco onde aferroava as moedas. São os tristes intelectuais, avaros de saber mas pobres de vida, mostrados num humor melancólico da bílis negra. Como tristes e gélidos solitários, convencem-se que a posse do saber é idêntica à cobiça de bens e assim deixam escapar o gozo simples e desprendido da vida.
Os óculos que deveriam ajudar a fazer entrar pelos olhos aquilo que estes só por si não conseguem ver, transportam-nos no cocuruto da cabeça pois apenas reflectem a tontice que lá está dentro.
Muitas vezes o pseudo-intelectual podia ser o próprio judeu, falso converso, o bode da inveja/cabrão invejoso-Neidhammel- como atesta a própria etimologia germânica* conotando-o com a avareza. Representava-se como um velho corcovado e safardana, com a barbicha pontiaguda idêntica à do animal do sacrifício, com paralelo herético e demoníaco, juntamente com os óculos e olhos esbugalhados e o rosário na mão, de quem imita em excesso as falsas leituras da Bíblia que não faz e a crença que não tem.
Noutros casos apareciam javardos a lerem os livros sagrados no que também já foi entendido como sátira idêntica e noutros casos, em que estes estão a oficiar, como troça com a ignorância do próprio clero (ver aqui).
Estes pseudo-intelectuais da época são também caricaturas daqueles que se entregam a prazeres espirituais mas nos terrenos lhes escapa a inteligência. Vítimas de um saber teórico, muito sábios mas muito fáceis de enganar pelas mulheres, Alexandre o Grande, Virgílio e Aristóteles não escaparam à troça. Virgílio pendurado no cesto que a amada prometeu içar até à janela do quarto ali ficou pendurado toda a noite para de manhã ser troçado pelos soldados romanos; Aristóteles fez de burro e deixou-se montar por Camtaspé para ser gozado por Alexandre e, mesmo este último, enquanto se embrenhava nos estudos não escapou às “facadelas” da amada.
O Lai de Aristóteles (c.1223) é atribuído ao clérigo e trovador normando Henri d’Alais. Phyllis, (também apelidada de Camtaspé) vinga-se de Aristóteles que aconselhara Alexandre a afastá-la pois achava que esta andava a distrai-lo da seriedade dos assuntos de governo. Numa dança sensual Phylis tenta o filósofo e promete-lhe favores se primeiro fizesse de cavalo e a passeasse, assim montada, em redor da sala do palácio. O sábio cai na artimanha e é apanhado nesta triste figura pelo discípulo. O talento da dialéctica ainda lhe permite argumentar que deste modo provava como estava certo pois se até um velho filósofo cai por causa das mulheres, quanto mais não cairia um jovem na pujança da idade.
Pseudo-intelecutalóides também podem ser esses “burros carregados de livros”; “verbos de encher”; presunçosos como o Grand Patapouf; os “papagaios de salão” e os grandes “cagões” que todos nós conhecemos. Nos provérbios medievais flamengos e nos fabulários a sátira escatológica utiliza o termo nesse mesmo sentido-“o caganço”; “cagar de alto”, o “cagar para isso” que ainda hoje é tão usado.
cagar nos óculos (“os cagões”; “qual deles o mais cagão”, “cagam pelo mesmo vazadouro”; "não fazem nada um sem o outro", na variante de também aludirem que os óculos lhes entram por onde mais gosto têm), cadeiral da Igreja de Sainte-Materne de Walcourt, 1531
Aqui fica divertida um excerto da sátira que Sebastian Brandt lhes dedicou na Nave dos Loucos.
Livros Inúteis
Conduzo a dança dos loucos
Pois estou rodeado de livros
nunca lidos e que nem compreendo.
Se vou à proa na nave
Não é sem justa razão
E bem-vindos os que bem me entendem:
Guardo um monte de tomos na minha casa
Que importa se não os não entendo:
Tenho na mais alta estima
os espanadores e mata-moscas
Ouvindo falar sabiamente,
Respondo: “possuo isso tudo em minha casa”.
Basta-me, para estar entre os anjos,
Rodear-me dos meus livros.
Diz-se que Ptolomeu tinha
todos os livros do mundo
e os considerava o seu tesouro
ordenava-os nas prateleiras
e não era mais sábio por isso.
Tenho tantos livros quanto ele:
Ao Diabo se nunca os li!
Haveria eu de perturbar o meu espírito,
De me atolar num montão de saber?
O estudo impede as quimeras!
Não posso eu, um grande senhor,
Pagar para que se instruam por mim?
E, ainda que tenha o espírito obtuso
Se estou entre doutos
Sei dizer em latim: “Ita!”
Mas no registo alemão
Estou mais à vontade que em latim.
Sei que vinho se diz vinum
Corno, qucklus, stulus cretino,
Faço-me chamar “douto sire”:
Basta-me esconder as minhas orelhas
Que ninguém descobrirá o burro do moleiro.
Sebastian Brandt, Stultifera Navis, 1494.
Bibliografia:
GAIGNEBET, Claude; LAJOUX, Dominique, Art profane et religion populaire au Moyen Âge, P.U.F., Vendôme, France, 1985.
HEERS, Jacques,Festas de loucos e Carnavais, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1987..
MAETERLINK, Louis, Le genre satirique, fantastique et licencieux dans la sculpture flamande et wallonne. Les miséricordes de stalles (art et folklore), Jean Schmit, Libraire, Paris, 1910.
imagens:
1 - Festa de Loucos, gravura de Peter Brueghel o Velho. Os loucos com óculos
2 - O falso converso- o judeu invejoso, agarrado ao rosário. Cadeiral da Igreja de S. Nicolau, Kalkar, Alemanha (1505/08)
3- Javali com óculos a ler os salmos, cadeiral de Oviedo, séc. XV
4- - Lai de Aristóteles, cadeiral da Igreja de Montbenoît (sec. XVI)
5 - Lai de Virgílio, cadeiral da Sé do Funchal (c.1514/15)
6- cagões a defecarem nos óculos, cadeiral da Igreja de Sainte- Materne de Walcourt, 1531
7- gravura da Nave dos Loucos de Sebastian Brant, 1494.
* agradecimento ao nosso poeta-hortelão na ajuda da tradução e referência ao uso compósito do termo bode em alemão. Na tradição latina e das sátiras de Fedro retiradas de Esopo, costumava referir-se pelo cão invejoso, ou cão do lavrador, o que guarda a palha e não a come nem deixa comer.
nota: clicar nas imagens para ampliar ou ver completas.
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adenda retirada da janelinha de comentários: o caramelo dos Tapores recordou o Bouvard e Pécouchet e o Luís Bonifácio lembrou o Pol Pot, quando mandou matar todos os cambodjanos que usavam óculos, pois o regime dispensava intelectuais.