No Dragoscópio :
Tirando Jesus Cristo (na sua dimensão "humana") creio que não deve haver sábio mais maltratado que Nietzsche. Há um Nietzsche detrás da pirotecnia -dos humores, como sensatamente viu Cioran -, mas a malta fica-se pela rama, pelo foguetório. Cada qual agarra o que lhe interessa, o que lhe convém, enfeita-se com ele e sai em procissão de psicoflagelantes. O problema é que Nietsche não se deixa digerir, ainda menos jiboiar, facilmente. Kant esconde-se atrás da teia abstrusa, Nietzsche envolve-se em fogo de artifício. Porque, além do filósofo que poderemos ou não apreciar, está, muito provavelmente, a melhor literatura da língua alemã. Um duplo génio portanto. E mesmo aqueles que desgostem da sua ética, dificilmente encontrarão motivo de reparo na sua estética. Como diz o povo, sentir-se-ão tentados a perdoar-lhe o mal que faz pelo bem que sabe.
Fernando Pessoa, um "nietzschiano", haveria de tecer o diagnóstico adequado: o poeta é um fingidor. Poderia o poeta Nietzsche fugir a esta inexorável regra?
Mas vamos à célebre "morte de Deus".
Sempre que se fala em Nietzsche, lá vem o "óbito Celeste". Foi Nietzsche que fez a "proclamação da morte de Deus", acusam os magistrados retóricos. Ainda sábado passado, no DN, o mestre-escola Borges arengava disso, como prelúdio a mais não sei que ecumenismo catita. Para o vulgo, sempre predisposto à balbúrdia e à alarvajura, a notícia decorrente destes arautos peregrinos é que Nietzsche matou Deus. Naturalmente, qualquer beato de loja de conveniência desata a vociferar contra o malandro do Nietzsche que, tendo visto Deus a chilrear numa faia, tratou de abatê-lo, sem dó nem piedade, com a sua fisga de filósofo travesso. Em contrapartida, os ateístas, superbeatos ainda mais ferozes, celebram-no como um hércules mundador de hidras opressoras. Entre uns e outros, evidentemente, o diabo só não escolhe porque patrocina.
Bem, Nietzsche matou Deus? Qual Deus? Como dizia o outro da chapelada, deuses há muitos. Andamos há milénios não apenas a matar-nos uns aos outros, como, proeza ainda mais gloriosa, a matar os deuses uns dos outros. Não foram tantos como as gentes, mas ainda dão um magote razoável. "Ah, mas Nietzsche, grande monstro, matou o nosso Deus! O de todos nós!"- bramais.
Deduzo, portanto, que Deus é uma propriedade vossa, um latifúndio. E vós sois "todos". Pergunto-me o que pensarão os chineses e os indianos da morte desse "vosso" Deus. Ou os tipos, alguns deles certamente bem esquisitos, espalhados
por essas galáxias fora. Mas vós sois os eleitos, os principais, os queridinhos, os filhos pródigos, será isso? Pergunto-me onde tereis ido buscar uma ideia compaixonada dessas...
Estou a mangar com a simbologia, pois estou. A "morte de Deus" não é literal, é simbólica. Morreu na filosofia e no pensamento ocidental; morreu na mente da nossa civilização. É isso que Nietzsche proclama?
Não proclama: constata. Verifica. Atesta. Há toda uma diferença. É o médico que passa a certidão de óbito. A malta, com a estridência arborícola digna da espécie, confunde o médico com o assassino.
Alguém andou a matar Deus. E Deus deixou-se matar? Que raio de Deus vulnerável é esse, que se deixa arrumar e varrer ao jeito das manias, conveniências e modas da turba iluminada? É um Deus sério ou é um deus-muleta, deus -prótese humana? De tal ordem que um dia o aleijadinho, ao descobrir a cadeira de rodas, festejou: "já não preciso da muleta para nada!" E ainda hoje anda nisso: "guardem lá o deus-muleta, agora já temos a ciência-cadeira de rodas!..."
Certamente, não foi Nietzsche quem fez do aleijadinho o umbigo do mundo e do Cosmos a mundana onfaloscopia de Deus.
Como se Deus não tivesse outra ocupação senão contemplar o umbigo do mundo. Como se Deus não tivesse outra finalidade que não existir para essa vigilância.
E, ainda mais certamente, não foi Nietzsche quem, antes da "morte", proclamou (aí sim, proclamada e reproclamada) a ausência de Deus. Quando se fez do mundo o "reino do mal" e Satã o príncipe desse Reino. É assim que a hubris trabalha. Daí ao caos presente foi um passo breve, fatal e duplo: entregaram a alma à Razão e o corpo ao diabo. E o mais pavoroso é quererem salvar com a razão aquilo que assassinaram e continuam a chacinar com ela. Confundem o punhal com a cruz. Confiam numa rameira para guardiã da virtude e pitonisa da verdade. Haverá melhor alibi para o criminoso do que a máscara de vítima?
Nem Nietzsche pretendeu arvorar sistema, formar escola ou arrebanhar prosélitos, nem me animam a mim ímpetos oraculares ou sequazes. Do pouco que sei, sei que não se venera Nietzsche: luta-se com ele. Arranca-se a alma à sala de ópio e lança-se ao chão de Sófocles, de Ésquilo, de Aristóteles... e do Calvário.
Tanto ou mais que a "morte de Deus", o que atormentou Nietzsche foi o Seu esquecimento. Isso e um encargo inestimável de que nunca será louvado o suficiente: o de dizer ao aleijadinho possesso algo que ele, hoje ainda mais que então, merece ouvir: "Tu, piolho cósmico, não és o umbigo nem a vedeta-mor do universo! Tu és apenas o protagonista duma tragédia. E quando te ensoberbesces, afinal, só te amesquinhas."