• «De acordo com a teoria económica corrente, podemos compreender a economia como compreendemos um maquinismo; mas as sociedades humanas estão em permanente flutuação e mudanças. As instituições sociais são formadas de convicções humanas; um rectângulo de papel serve de dinheiro apenas enquanto acreditamos que é dinheiro; de outro modo, é apenas uma curiosidade. As teorias que procuram mecanizar os mercados deixam de lado o facto mais importante: eles são ficções construídas pela imaginação e pelas expectativas humanas.

    Em particular nos mercados financeiros, as nossas expectativas sobre o futuro entrechocam-se. Os mercados financeiros não tendem para o equilíbrio. O excesso é o seu estado normal. Esta volatilidade no âmago das instituições financeiras liberalizadas dá origem a uma economia mundial organizada como um sistema de mercados livres essencialmente instáveis.

    Os que crêem que os mercados livres nos permitem formular expectativas racionais sobre o futuro vêem a longa expansão económica americana desde o início dos anos 80 até ao presente como prova de que os ciclos económicos são uma das bárbaras relíquias da história. Estão confiantes em que as economias que se submetem às exigências do consenso de Washington não precisam recear as súbitas contracções e longas depressões que as sacudiram no passado.

    Allan Greenspan, presidente do Banco Central Americano (Federal Reserve Bank), credibilizou o conceito de que os ciclos económicos estão obsoletos. Até 1989 Greenspan acreditou que os mercados livres se enraizavam na natureza humana e que apenas a tirania poderia evitar que o resto da humanidade os abraçasse. É louvável que Greenspan, numa conferência no Centro Woodrow Wilson em Junho de 1997, tenha confessado que após 1989 descobriu que «muito do que tomávamos por verdadeiro no nosso sistema de mercado livre não se devia à natureza, mas à cultura. O desmantelamento da função de planificação central não estabelece automaticamente, como alguns supunham, o capitalismo de mercado»

    Greenspan reconheceu a importância das normas culturais na sustentação dos mercados livres. Mas que cataclismo no mercado será preciso para convencer Greespan de que uma «nova era» de crescimento estável é apenas mais um mito?

    O laissez-faire global pode sucumbir no meio de uma crise ingerivel dos mercados bolsistas e das instituições financeiras. A enorme e praticamente obscura economia virtual dos derivados financeiros aumenta os riscos de uma ruptura sistémica.

    Como reagiria a sociedade americana desunida a um colapso bolsista como o que ocorreu no Japão no início dos anos 90? Hoje, uma ruptura dessa dimensão desencadearia convulsões económicas e sociais de grande escala nos Estados Unidos.
  • Independentemente de outros presságios de um tal evento, podemos ter a certeza de que mais ninguém falaria da utopia do governo minimalista. O regime internacional dos mercados livres não poderia sobreviver a uma convulsão económica no seu epicentro.

    Na realidade, a ideia que um mercado livre é um sistema auto-estabilizado é arcaica — uma curiosa relíquia do racionalismo iluminista. Será descartada logo que o mercado relembre aos investidores actuais que os que se sentem absolvidos pela história estão condenados a repeti-la.

    Contudo, o cenário mais provável para o fim da era actual de laissez-faire não é um cataclismo do mercado. É mais provável que se desenrole à medida que a hegemonia americana na economia mundial seja desafiada pelas novas potências emergentes.

    Como acontecia com a ordem económica liberal internacional pré-1914, um mercado livre global só funciona enquanto as suas instituições forem garantidas por uma efectiva potência global. Hoje falta aos Estados Unidos a vontade, e talvez a capacidade, de assumir as responsabilidades de uma potência imperial comparável à Inglaterra da belle époque».


    John Gray, Falso Amanhecer, 1998.

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