“E no mesmo tempo [partida da armada de Tristão da Cunha para a Índia] se alevantou em Lysboa hua ouujam muy gramde em sam Domyngos omde no altar dee Jhesu se faz a festa de Nosa Senhora estamdo a ymagem de Nosa Senhora no altar/foi vysto per muytas pessoas dygnas de ho ver hua camdea aceza no lado do crucifyxo e outras pessoas ha viam amte ha testa de Nosa Senhora com auoroço de devação começou a correr algua gemte ao mosteiro e foy em tamto crycymento que huus com outros se afogavam e começaram a fazer aguus mylagres amtre os quaes veo hu alemão e trouxe hua sua filha com hu mão aleyjada de seu naçymento e com mujta devoção a ofereçeo e recebeo saúde no mesmo momento e estamdo asy sobre emoçam muyta gemte a ver qys o pecado que veo hu cristão novo e por desdenhar dysse a camdea que parece deytem-lhe dagoa e apagar se ha o que ouuyndo o alemão tal blasfémea estamdo cheo de mujta fe do milagre logo sem trespasso arrancou de hua adaga que tynha e o matou dentro da mesma ygreja. /ao que acuydando outro dysse que o mataram porque dysera ha verdade o quall também logo foy morto e se hergueo tal alvoroço na gemte que estava noa ygreja que começaram de matar todos os christaos nouos que acharam com a quall fúria sayram ao alpendre de sam Domyngos onde também mataram os que acharam ao que acudyo Pêro de Lysboa que era juyz do cyuuel e a caualo entrou no alpedmdre com a vara da justyça na mao damdo pamcadas e queremdo prender os de arroydo/comtra o quall se hergueo aluoroço da gemte e o quyriam matar mas elle se sahyo fugymdo a caualo quanto mais podya ho quall syguiram ate o emçarararem em casa/ onde com muyta furya lhe quyseram poer o fogo se a vyzynhança o nom estrouuara mostrando que ardendo aquela casa se lhe qeymaryam as suas/ o que asy deixamdo por yso de fazer se tornaram a sam Domyngos e tornadndo matavam qamtos christaos novos achavam pelas ruas/ os que amdavam nesta matança heram os homes estramgeiros de fora da terra com os quaes se ajumtavam bargamtes da Rybeira e gemte bayxa por caso do roubo que em matando roubavam/ e os quaes asy matauam logo os leuavam arrastamdo em cordas pera Sam Domymgos porque aqamto correram apos o dycto Pero de Lysboa os que fycavam em Sam Domymgos fyzeram uma fugueyra em que //deytaram os mortos que estauam na Ygreja omde chegados estoutros com mujta gemte estavauam desejosos de roubar começaram de correr polas ruas da cydade fazemdo a dicta matamça com tamta hyra e furya que nom resgardam cousa algua nlm deyxando nehuma pessoa a vyda gramde nem pequena /e os outros os recebeyam em suas lamças e bysarmas que traziam /em que sem duuja eu que ho vy afyrmo que também padeceram morte muytos christaos velhos/ Bras Afonso Correa corregedor do crime que entam era em Lysboa vemdo o caso e o furor com que andava a que nom podya nem ousava comtraryar polo nom matarem amdava desymulado amte os matadores e dyzia /filhos pois jaa os mataes nom roubes porque eles em todos estes dyas carregavam suas naos de grandes roubos durou esta matamça asy ate segumda feyra per noyte que jaa parecya que ao outro dya nom mataryam/ huu frade de dicto musteiro de Sam Domyngos ymyctado do ymigo ou asy permytido per Deus /sahyo ha terça feira pola menhã com hua cruz de pão gramde aleuantada em suas maos e se foy pola cydade bradamdo aquy filhos pola fee de Jehesu Christo nom fyque nehu destes judeos com o que logo se ajumtaram gramdes cabydas destes matadores e acezos em mor yra nesta terça feira ate oras de jamtar que se o fradre tornou a seu musteiro com outros dous seus parceiros que per acerto com ele se toparam que ho ajudaram a trazer a dita cruz /neste dya a tarde foy achado huu christão novo que se chamava o Mascarenhas que hera gramde remdeyro e omem malqysto do povo o quall per eles tomado foy nele feyto cruas justyças com gramdes aluorços e a quarta feyra jaa dypois da morte deste nom avya tamyta matamça/ e logo no outro dya que foy qymta feira sahyo da see huua procyssão da mysericordya com muytos decyprinantes todos brandamdo/ paz/paz com que apagou de todo a matamça
el Rey dom Manuell estaua em Abramtes com a Rainha e sua corte o quall avemdo comselho sobre o caso segundo comprya o castygo ouve muy dyuersas opynjões e semtenças/elRey escreueo logo a governador da cydade que estaua em Torres Vedras com a casa de sopricação que se chegase a cydade e mandasse enforcar todolos malfeytores desta matamça semdo jaa partydo da cydade mujtas naos dos estramgeyros caregadas de mujto roubo e ryqezas/ o governador fazemdo o mandado delRey asy o mandou as justyças da cydade cruell que na Ribeira eram feytas tres forcas gramdes cheas e a forca da mysericordia e a forca de Samta Barbora as quaes des que eram cheas os tyravam e enterravam pera enforcarem outros em que se afyrma morreram muytos bc homens enforcados na cyade e per fora omde morreram mujtos sem culpa/ porque mujtas pessas da cydade recolheram e guardaram muytos dos dictos chrystaos novos em suas casas e eles dypois os acusavam que hos roubaram e sem mais proua que seus dictos avyam gramdes penas e qualquer que acusava algu que fora na matamça logo sem mais nada era enforcado /ate que dona Ysabell de Mendanha que estava em Samta Cruz espreueo sua carta a elRey lhe pydindo que ouuesse piadade de seu povo porque soubese certo que mujtos matava a justyça sem rezam nem merecymento de que ele darya gramde comta a Deus/polo que elRey logo mandou que cesase asy e que nom enforcasem senam per ymqyrição e dereyta justyça de verdade sabyda/ o que dypois mujto tempo aymda mujtos padecyam pólo dycto caso que emtaam fogyram e se foram fora da terra e dypois se tornavam pareçemdo lhe que jaa nom syriam conhecidos/ e todavya sae os conhecyam heram logo enforcados / o que asy aprouve a elRey por ser feyto hu tamanho //desmamdo em seu Reyno de Portugall que ate ly sempre fora mays obedyemte e regrado que nenhu de Espanha e sempre foy a dicta justyça avamte ate que os mesmos christãos novos lhe pydyram mysericordya e asy cessou a dicta justyça/e neste tempo sempre durou a peste muy gerall per todo o Reyno e logo sobryueram muj gramdes fomes que duraram dous anos" [...]
Códice atribuído a Gaspar Correia (1490?- †depois de 1563), Chronicas dos Reys de Portugal e summarios de suas vidas com a historia da Índia e armadas que se mandaram athé o anno de 1533 (adquirido à no ano de 1970 àfirma Sotheby’s que o ia levar a leilão).
O autor das Lendas da Índia ter-se-á baseado em manuscritos por ele coligidos e em compilação de fontes que transladou. Segundo Banha de Andrade que estudou o manuscrito estas Crónicas de D. Manuel e D. João III apresentam prioridade em relação às crónicas conhecidas.
As Crónicas de D. Manuel e a do Príncipe D. João de Damião de Góis foram publicadas em 1566 e 1567, já depois de Gaspar Correia ter morrido.
Gaspar Correia, Crónicas de D. Manuel e de D. João III (até 1533),Leitura, Introdução e índice por José Ferreira da Costa, Academia das Ciências de Lisboa, 1992.