[um deslinque por deslize todos os temos. Aproveita-se a ocasião para repor aqui uma porcalhada com dupla dedicatória-
Aos nossos porquinhos de estimação e ao gaiteiro (salvo seja) do Luís Rei ,a quem há três anos foi oferecido o bácoro e a sanfona].
Por tradição ancestral a gaita-de-foles sempre foi associada à provocação sexual. O tema populariza-se na Idade Média na literatura e na iconografia jocosa.
O termo "gaiteirice" prende-se com estes costumes e vemo-lo aplicado à luxúria desbocada dos loucos, dos velhos e das velhas afoitos a críticas e penitenciais da Igreja, por força da insistência no gozo.
De um modo mais descomprometido, os tocadores de gaita-de-foles fazem parte das festas do riso saudável e desbragado das patuscadas populares, acompanhadas de bebida e muita outra diversão.
Gil Vicente e Camões referem-no a propósito dos tempos soturnos trazidos pela Inquisição. A "apagada e vil tristeza" que já aparecera no
Triunfo do Inverno vicentino:
Em Portugal vi eu já
Em cada casa pandeiro
E gaita em cada palheiro;
E de vinte anos a cá
Não há hi gaita nem gaiteiro,
A cada porta hum terreiro,
Cada aldeia dez folias,
Cada casa atabaqueiro;
E agora Jeremias
hé nosso tamborileiro.
Só em Barcarena havia
tambor em cada moinho,
E no mais triste ratinho
S'enxergava uma alegria (Gil Vicente, Triunfo do Inverno).
Amores e calores fora de época parece que sempre atacaram em todas as épocas. Gil Vicente não os poupou nas suas sátiras:
Moça "Já perto sois de morrer. Donde nasce esta sandice que, quanto mais na velhice, amais os velhos viver? E mais querida, quando estais mais de partida, é a vida que deixais?
Velho "Tanto sois mais homicida, que, quando amo mais a vida, ma tirais. Porque meu tempo d'agora vai vinte anos dos passados; pois os moços namorados a mocidade os escora. Mas um velho, em idade de conselho, de menina namorado... Oh minha alma e meu espelho!
Moça "Oh miolo de coelho mal assado! (...)
A badalhoquice da velha era ainda mais caricata, estando na base da inversão da Tempo e da Ordem nas festas do solstício de Verão, em que o tema da Serração da Velha se inscreve.
Velho " Estas velhas são pecados, Santa Maria vai com a praga! Quanto mais homem as afaga, tanto mais são endiabradas!
Gil Vicente,O Velho da Horta
No Triunfo do Inverno, tragicomédia concebida como uma assoada e festa de Maio*, a velha Brásia Caiada, faz um percurso pela serra, suportando as intempéries invernais, porque deseja casar-
“com um mancebo solteiro
filho de priol d’Aveiro
e eu sua namorada
e o moço sapateiro
Porque diz o exemplo antigo
quando te dão o porquinho
vai logo có baracinho.
Ora eu cá assi o digo.
E mais quem inda s’atreve
com’eu que o posso fazer.
Que assi case eu com prazer
que vou cada vez mais leve.”
-Vingando-se da morte do Inverno, a velha do
charivari, acaba por desaparecer na Natureza.
No bestiário medieval o porco ou javardo, significa literalmente essa gula ou luxúria depravada. Já Santo Isidoro de Sevilha o recordava nas Etimologias: "os porcos são imundos porque se revolvem e sujam na terra à procura de alimentos". Na obra
Hortus Sanitatis (1485), inspirada em Aristóteles, Jehann von Cube desenvolve a ideia da associação do porco à luxúria, referindo a precocidade sexual do animal que aos oito meses já é capaz de copular.
Os exemplários acrescentam os mesmos atributos aos macacos beberrões e a todo o tipo de gula e prazeres carnais. Representam-se com este sentido em cortejos festivos, tocando instrumentos musicais, a par de sátiros, centauros e outras figuras humanas bestializadas e em despique com os homens selvagens.
Nestas gaiteirices, a gaita-de-foles parece ter esse específico significado sexual. Arcipreste de Talavera, na recolha de refrães que incluiu no
El Corbacho (1438), a propósito de frades e seculares dados a assediar a mulher do próximo, utiliza a frase:
"dignos por us fechos de tañer la cornamusa"Parece que a música popular e profana não se fazia apenas ouvir nas festarolas e touradas nos adros das igrejas. A confecção simples e pouco dispendiosa deste instrumento musical, levava a que muitas paróquias usassem a gaita no lugar do órgão.
O Louco ou bufão, termo de origem toscana, significava o chocalheiro, o bobo por cuja boca saem os disparates, venenos, malícias e todo o tipo de licenciosidades que servem para entreter os ignorantes e indiscretos, como foram definidos por Sebastián de Covarrubias no século XVII.
O bufo que diz coisas vãs e cujas palavras leva o vento representa também as cabeças aéreas, a razão adormecida. Este personagem domina grande parte da cultura satírica medieval, prolonga-se nos tempos modernos, numa confluência entre o erudito e o popular.
Da
Nave dos Loucos de Sebastian Brandt ao
Elogio da Loucura de Erasmo de Roterdão, passando pelas trovas populares e teatro vicentino, o louco é o antecessor do palhaço pobre dos tempos modernos.
O efeito escatológico das suas provocações tanto actua nas festas populares, feiras e vagabundagens de saltimbanco, como o promove a bobo de corte em meados do século XIV.
Nas cidades multiplicavam-se as companhias de loucos com ordenanças e cerimónias burlescas próprias e as
Festas de Loucos, dos
Inocentes e do
Asno servem também como momento de iconoclastia colectiva de que nos restam testemunhos iconográficos.
Na descrição de uma festa de loucos decorrida em Ecija diz-se mesmo que no meio do espectáculo se ouvia tambores e a
"gaita dos loucos"
(ver Caro Baroja, El Carnaval (Análisis histórico-cultural), Madrid, 1965, p. 326.)
Algumas representações do toque da gaita-de-foles aproximam-se de figuras metamorfoseadas (especialmente monges) cujos narizes se prolongam nos tubos da gaita ou nas flautas imprimindo-lhes um nítido carácter fálico. Noutros casos a associação sexual é mais explícita, mostrando claramente cenas de sexo contra natura ao lado dos porcos, macacos e coelhos gaiteiros.
Os tempos passam, os gostos mudam mas porcalhadas e gaiteirices não desapareceram nas brincadeiras pos-modernas. Aqui fica um grande porcalhão mais recente.
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*segundo Maria José Palla, A Palavra e a Imagem. Ensaios sobre Gil Vicente e a Pintura Qinhentista, Editorial Estampa, Lisboa, 1996.
consultar também:
site dedicado a gaitas-de-foles
imagens:
- Les Très Riches Heures du Duc de Bérry, 1413.
-Pieter Brueghel o Velho, Dança de camponeses, 1556
- Pieter Brueghel o Jovem, interior de festa de casamento (detalhe), c. 1620
- Pieter Brueghel o Jovem, velho gaiteiro
- retábulo da Sé Velha de Coimbra, provocação sexual entre homem selvagem e javardo a tocar gaita
- campónio a tocar gaita, gárgula da catedral de Plasencia
-porcos músicos- cadeiral de Santa Cruz de Coimbra;
-javardos a copularem ao som da gaita, cadeiral de Oviedo
-gravura da Reforma- "Papa doutor em Teologia e Mestre da Fé", Lucas Cranach, meados do século XVI-Erhard Schoen O demónio a tocar gaita de foles c. 1530
- Sebastian Brandt, A Nave dos Loucos, louco gaiteiro, gravura de Dürer.
- cena de felatio entre meninos, portal da Sé de Lamego
-menino a masturbar-se ao lado de coelho gaiteiro, capitel da igreja conventual de Vilar de Frades
- Jeff Koons, 1988, porquinhos e S. João Baptista
nota: acrescentada a gravura satírica do Papa de Lucas Cranach, graças ao BibliOdissey