O mundo das tricas pessoais sempre serviu para divertidas sátiras literárias e artísticas.
No caso de William Hogarth, torna-se uma verdadeira charada destrinçá-las no meio das suas troças à sociedade. Os métodos eram variados, tanto podia ficar-se pela simples caricatura ao visado, incluído em qualquer série de desventuras dos personagens, ou mesmo em retrato com dedicatória, como socorrer-se de vasto conhecimento de tradição do bestiário medieval e da simbólica clássica para as compor.
No entanto, o tratamento dos temas sem falso pudor, aliado ao conhecido temperamento difícil não o ajudou a granjear grandes apoios, nem a ser incluído entre os artistas mais consagrados, sendo arrumado no género secundário do grotesco e satírico
No final da vida, acentua-se o mau entendimento do pintor com políticos e críticos, levando a um isolamento e negrume com a perda de crédito a que se viu votado. Ainda assim, não lhe faltou o talento para ajustar algumas contas com a nata da sociedade, que tanto apoiava e fabricava carreiras, como destruía outras.
A Segismunda
Quando Hogarth pintou a heroína trágica de Bocaccio- Segismunda, abraçada ao coração do amante assassinado, confrontou-a com a tradição dos grandes mestres, como Correggio, no intuito de provar que um artista contemporâneo podia fazer com ela um obra que provocasse um impacto sentimental ainda mais poderoso.
O quadro foi rejeitado pelos seu velho inimigo político- John Wilkes, a quem ele satirizara em retrato, e até o aristocrata que lhe havia encomendado a pintura- Sir Richard Grosvenor contribuiu para a sua depreciação entre a elite.
No meio destas estas opiniões, foi marcante a julgamento impiedoso do notável historiador e crítico Horace Walpole.
Face a esta versão tão crua da heroína, afastada do gosto continental que continuava a copiar os antigos italianos, o connoisseur, entre outros dichotes, comentou que a Segismunda, com aqueles dedos tão ensanguentados quanto o coração que abraçava, mais parecia agarrar-se às vísceras de algum carneiro, acabado de comprar no mercado de St. James.
O macaco gramático
Pouco depois, na exposição da Society of Artists, o artista vinga-se desta deferência aos antigos e menosprezo pelo mérito da pintura da época. O frontispício do catálogo foi acompanhado de um pequena gravura satírica no reverso.
Inspirando-se na velha Iconologia de Cesare Ripa e na exposição de Martianus Capella, Hogarth não perdeu a oportunidade para mostrar como o conhecimento dos clássicos também pode ser usado para dar um correctivo trocista.
A representação alegórica da Gramática era figurada como uma donzela a regar as plantas, pois, tal como estas crescem através da água, também o espírito dos jovens se desenvolve pelo estudo da gramática.
Já que pedagogia andava a macaquear demasiados maneirismos do passado, no seu lugar, Hogarth coloca um macaco, bem aperaltado, a quem não falta a douta peruca, intentando regar umas plantas mortas.
Dos três vasos saem inúteis troncos murchos, minuciosamente observados à lupa pelo entendido símio, procurando maravilhas escondias, impossíveis de detectar a olho nu. Bem pode regá-las, que daqueles velhos troncos secos nada de novo brotará.
Nas legendas dos vasos lêem-se os respectivos óbitos: 1502; óbito 1600; óbito 1604. A filactéria maior tem gravada a palavra “exóticos”, numa charge aos críticos que se agarram às velhas e estragadas pinturas, venerando-as apenas pela antiguidade. A frase latina completa o sentido no rodapé, com uma citação de Marcial: esse quid hoc dicam?- vivis quod fama negatur!
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Imagens:1- Segismunda, 1759-61 (Tate Gallery)
2- Reverso do catálogo das pinturas exibidas em Spring Gardens, Gravura, 1761.
Consultar: Rudolf Wittkower, Allegory and the Migration of Symbols, Thames and Hudson, 1987.
Mark Hallett, Hogarth, Phaidon, 2000.
No caso de William Hogarth, torna-se uma verdadeira charada destrinçá-las no meio das suas troças à sociedade. Os métodos eram variados, tanto podia ficar-se pela simples caricatura ao visado, incluído em qualquer série de desventuras dos personagens, ou mesmo em retrato com dedicatória, como socorrer-se de vasto conhecimento de tradição do bestiário medieval e da simbólica clássica para as compor.
No entanto, o tratamento dos temas sem falso pudor, aliado ao conhecido temperamento difícil não o ajudou a granjear grandes apoios, nem a ser incluído entre os artistas mais consagrados, sendo arrumado no género secundário do grotesco e satírico
No final da vida, acentua-se o mau entendimento do pintor com políticos e críticos, levando a um isolamento e negrume com a perda de crédito a que se viu votado. Ainda assim, não lhe faltou o talento para ajustar algumas contas com a nata da sociedade, que tanto apoiava e fabricava carreiras, como destruía outras.
A Segismunda
Quando Hogarth pintou a heroína trágica de Bocaccio- Segismunda, abraçada ao coração do amante assassinado, confrontou-a com a tradição dos grandes mestres, como Correggio, no intuito de provar que um artista contemporâneo podia fazer com ela um obra que provocasse um impacto sentimental ainda mais poderoso.O quadro foi rejeitado pelos seu velho inimigo político- John Wilkes, a quem ele satirizara em retrato, e até o aristocrata que lhe havia encomendado a pintura- Sir Richard Grosvenor contribuiu para a sua depreciação entre a elite.
No meio destas estas opiniões, foi marcante a julgamento impiedoso do notável historiador e crítico Horace Walpole.
Face a esta versão tão crua da heroína, afastada do gosto continental que continuava a copiar os antigos italianos, o connoisseur, entre outros dichotes, comentou que a Segismunda, com aqueles dedos tão ensanguentados quanto o coração que abraçava, mais parecia agarrar-se às vísceras de algum carneiro, acabado de comprar no mercado de St. James.
O macaco gramático
Pouco depois, na exposição da Society of Artists, o artista vinga-se desta deferência aos antigos e menosprezo pelo mérito da pintura da época. O frontispício do catálogo foi acompanhado de um pequena gravura satírica no reverso.
Inspirando-se na velha Iconologia de Cesare Ripa e na exposição de Martianus Capella, Hogarth não perdeu a oportunidade para mostrar como o conhecimento dos clássicos também pode ser usado para dar um correctivo trocista.A representação alegórica da Gramática era figurada como uma donzela a regar as plantas, pois, tal como estas crescem através da água, também o espírito dos jovens se desenvolve pelo estudo da gramática.
Já que pedagogia andava a macaquear demasiados maneirismos do passado, no seu lugar, Hogarth coloca um macaco, bem aperaltado, a quem não falta a douta peruca, intentando regar umas plantas mortas.
Dos três vasos saem inúteis troncos murchos, minuciosamente observados à lupa pelo entendido símio, procurando maravilhas escondias, impossíveis de detectar a olho nu. Bem pode regá-las, que daqueles velhos troncos secos nada de novo brotará.
Nas legendas dos vasos lêem-se os respectivos óbitos: 1502; óbito 1600; óbito 1604. A filactéria maior tem gravada a palavra “exóticos”, numa charge aos críticos que se agarram às velhas e estragadas pinturas, venerando-as apenas pela antiguidade. A frase latina completa o sentido no rodapé, com uma citação de Marcial: esse quid hoc dicam?- vivis quod fama negatur!
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Imagens:1- Segismunda, 1759-61 (Tate Gallery)
2- Reverso do catálogo das pinturas exibidas em Spring Gardens, Gravura, 1761.
Consultar: Rudolf Wittkower, Allegory and the Migration of Symbols, Thames and Hudson, 1987.
Mark Hallett, Hogarth, Phaidon, 2000.