O Homem Selvagem está associado a uma série de ritos e tradições populares que incluem as festas das Robigalia- (do selvagem Robigus, já referido por Plínio) da purificação dos homens menstruados ou dos ritos primaveris do S. João Verde, representado a festa popular de Maio, a festa da Primavera- ligação aos green man ou homens silvestres.
A iconografia e os relatos festivos alternam a representação do selvagem, de fartos pelos arruivados, com o homem silvestre coberto de folhas numa simbólica entre os rituais de purificação dos campos e doenças das plantas- a ferrugem ou as diferentes “lepras” que necessitam de ser exorcizadas pelo final do Inverno com o homem silvestre dos triunfos do solstício de Verão.
De João a João- o Crisóstomo e o S. João Baptista como os eremitas e outros santos, comemorados entre finais de Janeiro e inícios de Fevereiro como S. Finiano, discípulo de S. Brandão e patrono dos leprosos.
Entre nós existe documentação que refere a cavalgada em dia de S. João em Óbidos, uma festa da natureza, do solstício- o Triunfo do Verão sobre o Inverno.
No Auto da Festa de Gil Vicente, duas ciganas cantam: “San Juã verde passo por aqui;/ quan garridice lo vi venir” e no Triunfo do Inverno são dois rapazes que o referem:” Quem diz que não he este/ San João o Verde”, numa alusão ao Green Man, o folhudo ou “bailador da mourisca”
O pêlo destes homens selvagens equipara-se à pele dos homens-urso, como nos contos de Grimm- o urso perde a pele na festa de 2 de Fevereiro; o selvagem perde o pêlo ruivo na mesma altura em que se purificam-se os campos e as peles doentes e se humaniza o selvagem.
O Selvagem torna-se também personagem de romance de cavalaria como no caso das várias versões da História do nobre Valentim e de Ourson que se cruzam com outras lendas, incluindo a de Merlin e a Vida de Jehan Paulu.
O tema centra-se no destino inverso de dois heróis que são irmãos gémeos. O cavaleiro de corte e o irmão abandonado no bosque que se torna um gigante selvagem. Há sempre um rei, uma eleita, a sua troca na noite de núpcias ou uma intriga que leva à sua expulsão da corte. Depois dá-se o nascimento dos gémeos na floresta, sendo um deles recolhido e levado para o palácio e o outro amamentado por uma ursa.Mais tarde acaba por se dar o encontro entre os gémeos- o combate e a submissão do selvagem e a sua recuperação na civilidade do palácio onde é alvo de assédio pelas nobres senhoras da corte.
A força bruta, a potência sexual e a lubricidade deste ser ávido de instintos servem à medida para dar voz a todas as fantasias silenciadas. A saga do selvagem tipifica em paralelo sensitivo a demanda espiritual do amor cortês. O selvagem rapta a donzela na floresta e faz despertar as forças lúbricas desse território que não está submetido às regras da civilidade. O cavaleiro persegue-o e, tal como na caçada ao licorne, o selvagem também acaba cativo por influência da ambígua castidade da dama por quem se deixou seduzir.
A loucura mansa do selvagem torna-se também motivo para graças e festarolas em que este representa papel idêntico ao louco da corte. No final acaba por conhecer a razão, salvando a alma pela descoberta da fé. Em diversas versões acaba por se tornar um honrado senhor feudal, como na lenda do Orson, filho de Pepino o Breve, ou na variante do Ferragus-Ferrabrás que também teria governado algures no nosso reino.
Os selvagens fazem também parte das mascaradas das festas populares medievais, prolongando-se em reminiscências das mascaradas silvestres que ainda hoje persistem em diversos locais.
Incluíam-se a par dos loucos e dos gigantes nas festas do mundo às avessas dos Inocentes entronizados ou nos posteriores carnavais, passando pelos festejos régios e procissões, como sucedia na do Corpo de Deus.
Nos cortejos régios abriam passagem ao rei lançando erva pelo chão. Este papel tem paralelo com o gosto iconográfico de os fazer representar como tenentes segurando os escudos familiares sendo-lhes também atribuída uma relação com as forças inferiores, brutais e indomáveis colocadas ao serviço do poder[1].
Animavam também as representações do teatro profano, os chamados entremezes, adquirindo dignidade de corte ao participarem como momos em jogos, danças e mascaradas promovidas pelos monarcas.
Zurara refere os momos na Crónica da Tomada de Ceuta, c1414- festa em Viseu:
[...] mas fez ainda o ifante Dom Hamrique por acrescentar seus desenfadamentos, ca ordenou logo como se fezessem umas nobres festas em Viseu [...] mandou o Ifante a Lixboa e ao Porto per panos de sirgo de lã e broladores e alfaiates pêra fazerem suas livres e momos segundo sua festa realmente pertencia [...]”.
Em 1451, por ocasião do casamento da irmã de Afonso V- D. Leonor, com o Imperador alemão Frederico III representaram-se vários momos- o rei chegou com os membros da corte, todos vestidos como homens selvagens, montados em cavalos enfeitados [2]
O padre Nicolau Landckman de Valckenstein que descreve os preparativos para o casamento: “No dia de S. Colomano, que é no dia 13 de Outubro (...) acabada a ceia, durante toda a noite, fizeram-se danças e jogos variados e esplêndidos (...)Seguidamente vieram africanos e mouros, com um engenho à maneira de dragão, com danças e aparatos segundo seu costume, prestando homenagem à senhora imperatriz”[3].
Em Paris, no ano de 1431 havia homens selvagens no pontão de Saint-Denis na festa citadina reconstruí-se mesmo uma floresta em torna da fonte (como símbolo de um Paraíso invertido em que homens e mulheres selvagens se divertiam numa série de jogos. O mesmo sucedeu em Ruão igualmente em torno da fonte à semelhança de um génesis herético como Bosch representou no Jardim das Delícias
Gil Vicente também fala de entremezes no Auto Pastoril Português e na Floresta dos Enganos. Há quem entenda que as próprias peças dele também têm carácter de entremez, como é o caso de Quem Tem Farelos, Auto da Índia, Juiz da Beira, Farsa das Ciganas, Farsa dos Almocreves e Farsa dos Físicos. A própria peça Triunfo de Maio, relacionada com estes ritos de mudança de estação- a serração da velha- foi escrita aquando do parto de D. Catarina para celebrar o nascimento da princesa Isabel, a 28 de Abril de 1529 numa alusão à cíclica das festividades de Maio.
A elevação do selvagem da festa popular à festa de corte torna-se de tal modo exótica que os próprios nobres e monarcas passam a usar esta mascára em alegres folias e bailaricos.
A nobilitação do tema é também acompanhada pelo seu uso na decoração das baixelas e ricas salvas de pratas que serviam aos banquetes.
Na sua iconografia cruzam-se referências ao mundo às avessas dos carnavais e ditados populares, com os combates entre cavaleiros e selvagens decalcados dos já referidos romances de cavalaria.
Nas salvas manuelinas do Palácio da Ajuda [4] cuja autoria parece dever-se ao próprio Gil Vicente, podemos testemunhar este complexo mundo de combates festivos e danças com homens mascarados de selvagens. O sentido dominante apresenta características das sátiras do mundo às avessas, com missas invertidas e bispos-selvagens a oficiarem com a ajuda de sátiros, assim como toda uma série de alusões à explosão do mundo carnavalesco.
Mais do que combater ou criticar esse mundo dos instintos, o que se dá conta é da sua festiva galhardia em ruidosas danças de chocalhos nos tornozelos, batidas de pratos e cegarregas, simulando combates com guerreiros bestializados. Pelo meio proliferam as gavinhas decorativas e os cachos de uvas dionisíacos, por onde circulam algumas aves e cães. Estes canídeos também são comuns em iconografias do género, prendendo-se com a alusão ao cão que acompanhava o herói na caça ao selvagem.
No entanto, numa das salvas e noutra idêntica de colecção privada, um dos cães enfia a cabeça no que parece uma espécie de panela ou escumadeira furada.
Pode tratar-se de uma mera variação decorativa sem indicar mais nada, mas a verdade é que recorda iconografia identicamente simplificada do dito popular do "caldo entornado", muito comum nas misericórdias dos cadeirais medievais.
Tratava-se de uma sátira à inversão dos sexos, com a mulher a bater no marido por chegar tarde para jantar e o cão a aproveitar a contenda para se enfiar na panela e devorar o manjar.
O facto de nas salvas aparecer um objecto que se assemelha a uma escumadeira ou panela furada também tem paralelo com a inversão das núpcias, quando o cavaleiro de triste sorte acaba por casar com uma horrível e desmazelada megera.Brueghel recordou-o numa das suas satíricas gravuras do casamento da noiva desmazelada.
A infiltração desta tradição popular nas festividades de elites também teve alguns momentos trágicos. Ficou tristemente célebre uma mascarada decorrida na corte de Carlos VI. Um tal Hangrigen de Gersan, que era senhor de fino espírito, tornara-se conhecido pelas inventivas fantasias que concebia para as festas de casamentos da cidade. Foi à custa dessa fama que o monarca aceitou que organizasse uma idêntica nos salões do Paço.
Para o efeito, o artista lembrou-se de um entremez com fantasias de selvagens. Os fatos foram confeccionados em seda coberta de pelos de linho que escorriam da cabeça aos pés dos diversos nobres que se ofereceram para os usar. O preparo parece ter sido tão realista que a desgraça aconteceu. O duque de Orleães que se encontrava na sala e não estava a par do acontecimento, ao ver o monarca entrar, arrastando atrás de si aqueles desgraçados selvagens amarrados uns aos outros, não fez mais nada- pegou numa tocha e aproximou-se deles para tirar a limpo o mistério. Por infelicidade o fogo ateou-se-lhes aos fatos com tal rapidez que à excepção do senhor de Nanteuil que ainda teve tempo para se atirar para dentro de uma bacia, conta-se que poucos “selvagens” se salvaram. Ficou conhecida como a Momerie des Ardans, realizada no Hotel Royal de Saint-Paul de Paris no mês de Janeiro de 1393.
Nos exemplos anteriores, ainda os governantes tinham suficiente sentido de humor para participarem nestas mascaradas mas outros houve cuja “selvajaria” imperial se levava mais a sério. Quando em 1810 Napoleão I visitou os Países Baixos, acompanhado de Maria Luísa, foi surpreendido na estrada em direcção a Gand, por um grupo de pândegos mascarados de gigantes em momices ao som de ruidosa musicata. Eram os gigantes de Wetteren que acompanhados das autoridades locais decidiram fazer-lhe esta simpática surpresa. Tão acolhedora não foi a reacção do Imperador. Passada a primeira surpresa gritou-lhes para se afastarem pois não queria monstros diante da Imperatriz e mandou avançar a tropa contra os desgraçados que desataram a fugir espavoridos, acabando os menos ágeis logo ali esventrados e esfolados pela 22ª brigada de cavalaria ligeira.
Mas, a que deixou memórias e réplicas mais interessantes foi mesmo a do baile dos Ardentes. Edgar Allan Poe deu continuação ao relato, no conto de
Hop-Frog, onde um bobo da corte se vinga, numa mascarada em que os nobres ardem vestidos de orangotangos e até o Lou Reed se lembrou de a imortalizar no album dedicado aos contos fantásticos do escritor.
Hop Frog:
Tomorrow is the seasonal ball
I propose costumes for you
and the honourable ministers to wear
King:
Yes?
Hop Frog:
All dress as orangutans
All your guests will run and scream
with their mouths agape
And try to hide
And you, Sire, will have last laugh
For such imperial cunning
Hop Frog:
I will redress the wrong
I will torture you
I will burn you
Dead
Tripitena:
My prince
My prince
You light the fire of eternal fame
Burn, monkeys
Burn
Exposição Homem Selvagem- Galeria Cozinha, FBAUP(7-31 Maio, 2007)
A iconografia e os relatos festivos alternam a representação do selvagem, de fartos pelos arruivados, com o homem silvestre coberto de folhas numa simbólica entre os rituais de purificação dos campos e doenças das plantas- a ferrugem ou as diferentes “lepras” que necessitam de ser exorcizadas pelo final do Inverno com o homem silvestre dos triunfos do solstício de Verão.
De João a João- o Crisóstomo e o S. João Baptista como os eremitas e outros santos, comemorados entre finais de Janeiro e inícios de Fevereiro como S. Finiano, discípulo de S. Brandão e patrono dos leprosos.
Entre nós existe documentação que refere a cavalgada em dia de S. João em Óbidos, uma festa da natureza, do solstício- o Triunfo do Verão sobre o Inverno.
No Auto da Festa de Gil Vicente, duas ciganas cantam: “San Juã verde passo por aqui;/ quan garridice lo vi venir” e no Triunfo do Inverno são dois rapazes que o referem:” Quem diz que não he este/ San João o Verde”, numa alusão ao Green Man, o folhudo ou “bailador da mourisca”
O pêlo destes homens selvagens equipara-se à pele dos homens-urso, como nos contos de Grimm- o urso perde a pele na festa de 2 de Fevereiro; o selvagem perde o pêlo ruivo na mesma altura em que se purificam-se os campos e as peles doentes e se humaniza o selvagem.
O Selvagem torna-se também personagem de romance de cavalaria como no caso das várias versões da História do nobre Valentim e de Ourson que se cruzam com outras lendas, incluindo a de Merlin e a Vida de Jehan Paulu.
O tema centra-se no destino inverso de dois heróis que são irmãos gémeos. O cavaleiro de corte e o irmão abandonado no bosque que se torna um gigante selvagem. Há sempre um rei, uma eleita, a sua troca na noite de núpcias ou uma intriga que leva à sua expulsão da corte. Depois dá-se o nascimento dos gémeos na floresta, sendo um deles recolhido e levado para o palácio e o outro amamentado por uma ursa.Mais tarde acaba por se dar o encontro entre os gémeos- o combate e a submissão do selvagem e a sua recuperação na civilidade do palácio onde é alvo de assédio pelas nobres senhoras da corte.
A força bruta, a potência sexual e a lubricidade deste ser ávido de instintos servem à medida para dar voz a todas as fantasias silenciadas. A saga do selvagem tipifica em paralelo sensitivo a demanda espiritual do amor cortês. O selvagem rapta a donzela na floresta e faz despertar as forças lúbricas desse território que não está submetido às regras da civilidade. O cavaleiro persegue-o e, tal como na caçada ao licorne, o selvagem também acaba cativo por influência da ambígua castidade da dama por quem se deixou seduzir.
A loucura mansa do selvagem torna-se também motivo para graças e festarolas em que este representa papel idêntico ao louco da corte. No final acaba por conhecer a razão, salvando a alma pela descoberta da fé. Em diversas versões acaba por se tornar um honrado senhor feudal, como na lenda do Orson, filho de Pepino o Breve, ou na variante do Ferragus-Ferrabrás que também teria governado algures no nosso reino.
Os selvagens fazem também parte das mascaradas das festas populares medievais, prolongando-se em reminiscências das mascaradas silvestres que ainda hoje persistem em diversos locais.
Incluíam-se a par dos loucos e dos gigantes nas festas do mundo às avessas dos Inocentes entronizados ou nos posteriores carnavais, passando pelos festejos régios e procissões, como sucedia na do Corpo de Deus.
Nos cortejos régios abriam passagem ao rei lançando erva pelo chão. Este papel tem paralelo com o gosto iconográfico de os fazer representar como tenentes segurando os escudos familiares sendo-lhes também atribuída uma relação com as forças inferiores, brutais e indomáveis colocadas ao serviço do poder[1].
Animavam também as representações do teatro profano, os chamados entremezes, adquirindo dignidade de corte ao participarem como momos em jogos, danças e mascaradas promovidas pelos monarcas.
Zurara refere os momos na Crónica da Tomada de Ceuta, c1414- festa em Viseu:
[...] mas fez ainda o ifante Dom Hamrique por acrescentar seus desenfadamentos, ca ordenou logo como se fezessem umas nobres festas em Viseu [...] mandou o Ifante a Lixboa e ao Porto per panos de sirgo de lã e broladores e alfaiates pêra fazerem suas livres e momos segundo sua festa realmente pertencia [...]”.
Em 1451, por ocasião do casamento da irmã de Afonso V- D. Leonor, com o Imperador alemão Frederico III representaram-se vários momos- o rei chegou com os membros da corte, todos vestidos como homens selvagens, montados em cavalos enfeitados [2]
O padre Nicolau Landckman de Valckenstein que descreve os preparativos para o casamento: “No dia de S. Colomano, que é no dia 13 de Outubro (...) acabada a ceia, durante toda a noite, fizeram-se danças e jogos variados e esplêndidos (...)Seguidamente vieram africanos e mouros, com um engenho à maneira de dragão, com danças e aparatos segundo seu costume, prestando homenagem à senhora imperatriz”[3].
Em Paris, no ano de 1431 havia homens selvagens no pontão de Saint-Denis na festa citadina reconstruí-se mesmo uma floresta em torna da fonte (como símbolo de um Paraíso invertido em que homens e mulheres selvagens se divertiam numa série de jogos. O mesmo sucedeu em Ruão igualmente em torno da fonte à semelhança de um génesis herético como Bosch representou no Jardim das Delícias
Gil Vicente também fala de entremezes no Auto Pastoril Português e na Floresta dos Enganos. Há quem entenda que as próprias peças dele também têm carácter de entremez, como é o caso de Quem Tem Farelos, Auto da Índia, Juiz da Beira, Farsa das Ciganas, Farsa dos Almocreves e Farsa dos Físicos. A própria peça Triunfo de Maio, relacionada com estes ritos de mudança de estação- a serração da velha- foi escrita aquando do parto de D. Catarina para celebrar o nascimento da princesa Isabel, a 28 de Abril de 1529 numa alusão à cíclica das festividades de Maio.
A elevação do selvagem da festa popular à festa de corte torna-se de tal modo exótica que os próprios nobres e monarcas passam a usar esta mascára em alegres folias e bailaricos.
A nobilitação do tema é também acompanhada pelo seu uso na decoração das baixelas e ricas salvas de pratas que serviam aos banquetes.
Na sua iconografia cruzam-se referências ao mundo às avessas dos carnavais e ditados populares, com os combates entre cavaleiros e selvagens decalcados dos já referidos romances de cavalaria.
Nas salvas manuelinas do Palácio da Ajuda [4] cuja autoria parece dever-se ao próprio Gil Vicente, podemos testemunhar este complexo mundo de combates festivos e danças com homens mascarados de selvagens. O sentido dominante apresenta características das sátiras do mundo às avessas, com missas invertidas e bispos-selvagens a oficiarem com a ajuda de sátiros, assim como toda uma série de alusões à explosão do mundo carnavalesco.
Mais do que combater ou criticar esse mundo dos instintos, o que se dá conta é da sua festiva galhardia em ruidosas danças de chocalhos nos tornozelos, batidas de pratos e cegarregas, simulando combates com guerreiros bestializados. Pelo meio proliferam as gavinhas decorativas e os cachos de uvas dionisíacos, por onde circulam algumas aves e cães. Estes canídeos também são comuns em iconografias do género, prendendo-se com a alusão ao cão que acompanhava o herói na caça ao selvagem.
No entanto, numa das salvas e noutra idêntica de colecção privada, um dos cães enfia a cabeça no que parece uma espécie de panela ou escumadeira furada.
Pode tratar-se de uma mera variação decorativa sem indicar mais nada, mas a verdade é que recorda iconografia identicamente simplificada do dito popular do "caldo entornado", muito comum nas misericórdias dos cadeirais medievais.
Tratava-se de uma sátira à inversão dos sexos, com a mulher a bater no marido por chegar tarde para jantar e o cão a aproveitar a contenda para se enfiar na panela e devorar o manjar.
O facto de nas salvas aparecer um objecto que se assemelha a uma escumadeira ou panela furada também tem paralelo com a inversão das núpcias, quando o cavaleiro de triste sorte acaba por casar com uma horrível e desmazelada megera.Brueghel recordou-o numa das suas satíricas gravuras do casamento da noiva desmazelada.
A infiltração desta tradição popular nas festividades de elites também teve alguns momentos trágicos. Ficou tristemente célebre uma mascarada decorrida na corte de Carlos VI. Um tal Hangrigen de Gersan, que era senhor de fino espírito, tornara-se conhecido pelas inventivas fantasias que concebia para as festas de casamentos da cidade. Foi à custa dessa fama que o monarca aceitou que organizasse uma idêntica nos salões do Paço.
Para o efeito, o artista lembrou-se de um entremez com fantasias de selvagens. Os fatos foram confeccionados em seda coberta de pelos de linho que escorriam da cabeça aos pés dos diversos nobres que se ofereceram para os usar. O preparo parece ter sido tão realista que a desgraça aconteceu. O duque de Orleães que se encontrava na sala e não estava a par do acontecimento, ao ver o monarca entrar, arrastando atrás de si aqueles desgraçados selvagens amarrados uns aos outros, não fez mais nada- pegou numa tocha e aproximou-se deles para tirar a limpo o mistério. Por infelicidade o fogo ateou-se-lhes aos fatos com tal rapidez que à excepção do senhor de Nanteuil que ainda teve tempo para se atirar para dentro de uma bacia, conta-se que poucos “selvagens” se salvaram. Ficou conhecida como a Momerie des Ardans, realizada no Hotel Royal de Saint-Paul de Paris no mês de Janeiro de 1393.
Nos exemplos anteriores, ainda os governantes tinham suficiente sentido de humor para participarem nestas mascaradas mas outros houve cuja “selvajaria” imperial se levava mais a sério. Quando em 1810 Napoleão I visitou os Países Baixos, acompanhado de Maria Luísa, foi surpreendido na estrada em direcção a Gand, por um grupo de pândegos mascarados de gigantes em momices ao som de ruidosa musicata. Eram os gigantes de Wetteren que acompanhados das autoridades locais decidiram fazer-lhe esta simpática surpresa. Tão acolhedora não foi a reacção do Imperador. Passada a primeira surpresa gritou-lhes para se afastarem pois não queria monstros diante da Imperatriz e mandou avançar a tropa contra os desgraçados que desataram a fugir espavoridos, acabando os menos ágeis logo ali esventrados e esfolados pela 22ª brigada de cavalaria ligeira.
Mas, a que deixou memórias e réplicas mais interessantes foi mesmo a do baile dos Ardentes. Edgar Allan Poe deu continuação ao relato, no conto de
Hop-Frog, onde um bobo da corte se vinga, numa mascarada em que os nobres ardem vestidos de orangotangos e até o Lou Reed se lembrou de a imortalizar no album dedicado aos contos fantásticos do escritor.
Hop Frog:
Tomorrow is the seasonal ball
I propose costumes for you
and the honourable ministers to wear
King:
Yes?
Hop Frog:
All dress as orangutans
All your guests will run and scream
with their mouths agape
And try to hide
And you, Sire, will have last laugh
For such imperial cunning
Hop Frog:
I will redress the wrong
I will torture you
I will burn you
Dead
Tripitena:
My prince
My prince
You light the fire of eternal fame
Burn, monkeys
Burn
Exposição Homem Selvagem- Galeria Cozinha, FBAUP(7-31 Maio, 2007)
[1]Maria José GOULÃO, “Do mito do homem selvagem à descoberta do “Homem Novo”: A representação do negro e do índio na escultura manuelina”, Portugal e Espanha entre a Europa e Além-Mar, Actas do IV Simpósio Luso_espanhol de História da Arte, subsídios para a História da Arte Portuguesa XXXIV, Coimbra, 1992, pp. 321- 345
[2] Garcia de Resende, Crónica de D. João II, ed. 1902, Biblioteca Clássicos Portugueses
Cap CXXVII.
[3]in Leonor de Portugal Imperatriz da Alemanha, diário da viagem do Embaixador Nicolau Landckman de Valckenstein. Ed e tradução do texto latino de Aires A. De nascimento, et all, ed. Cosmos, Colecção Medievalia, 1992, p35.
[4] Maria do Carmo Rebelo de ANDRAFE, Iconografia Narrativa na Ourivesaria Manuelina: as Salvas Historiadas, tese mestrado, História da Arte, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1997.
Consultar também:
Ana Maria ALVES, Entradas Régias Portuguesas, Livros Horizonte, Lisboa, s.d., p22
Miguel, António DIAS, “Entremezes e representações na Procissão do Corpo de Deus no Reinado de D. Manuel (1509- 1514)” in Colóquio, Revista de Artes e letras, nº 43, Fund. C. Gulb., Lisboa, Abril, 1967, pp. 65- 67.
Claude GAIGNEBET, Jean Dominique LAJOUX, Art Profane et religion populaire au Moyen Âge, PUF, 1985.
Timothy HUSBAND, The Wild Man- Medieval Myth and Symbolism, New York, The Metropolian Museum of Art, 1980.
Louis Maeterlink, Le Genre Satirique,Fantastique et Licencieux dans la Sculptures Flamande et Wallone. Les Miséricordes de Stalles (Art et Folklore), Paris, Jean Schemit, Libraire, 1940.
Mário MARTINS, “representações teatrais em Lisboa no ano de 1451, Brotéria, 1960, vol. LXXI, , pp. 420-430.
Gomes Eanes de ZURARA, Crónica da Toma de Ceuta, Edição da biblioteca Nacional da Ajuda, s.d., cap. XXIII, pp. 72-73
imagens:
1- queima do homem selvagem, Romance de Alexandre, manuscrito séc. XV, Paris.
2- casal de selvagens, Charola do Convento de Cristo em Tomar
3- detalhe de página iluminada, selvagem a raptar donzela, c.1340
4- jogo do combate de Valentin e Ourson, Peter Brueghel
5- selvagem a segurar cortinado, túmulo de Fernão Teles de Menezes, S. Marcos de Tentúgal (c.1447)
6- gravuras de máscaras realizadas para os festejos de casamento d Johann Friedrich Herzog von Württemberg com Barbara Sophie von Brandenburg, em Novembro de 1609, da autoria de Balthasar Küchler, compiladas por Georg Donauer, no livroRepræsentatio Der Fürstlichen Auffzug und Ritterspil,Stuttgart, 1611
7-10- salva manuelina idêntica à da Colecção do Palácio da Ajuda [colecção particular]
11- "caldo entornado"- misericórdia do cadeiral manuelino do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra
12- A noiva desmazelada, gravura de Pieter Brueghel
13- Mommerie des Ardans, Claude Malingre, Annales Génerales de la Ville de Paris, Poncelet in-fº, 795p, 1640
14- Momerie des Ardents, iluminura séc. XV.
15- James Ensor, a vingança de Hop-Frog, 1897.