Dentro do cinema estava-se bem, tudo era suave e quente. Enormes órgãos tão acariciantes como os de uma basílica, e então depois de estarmos aquecidos, órgãos como coxas. Não era tempo perdido. Mergulhávamos em cheio num morno perdão. Só tínhamos que nos deixar arrastar até podermos admitir que o mundo talvez acabasse de se converter enfim à indulgência. Ali dentro estava quase.
Os sonhos erguem-se então em plena noite, indo consumir na miragem de uma luz móvel. Não é bem deste mundo o que se passa na tela, existe sempre um espaço dúbio para os pobres, para os sonhos e para os mortos. Devemos apressar-nos a devorar aqueles sonhos para atravessarmos depois a vida que lá fora nos espera, à saída do cinema, e existir alguns dias mais em plena atrocidade das coisas e dos homens. Escolhemos entre os sonhos os que mais nos reconfortam a alma. Comigo são, confesso, os sonhos porcos. Não é questão de que nos orgulhemos, num milagre aproveita-se o que dele nos é possível conservar. Uma loira com uns marmelos e uma nuca inesquecíveis entendeu por bem vir romper o silêncio da tela com uma canção da sua vida solitária. Bem poderíamos chorar com ela.

Isso sim, é que era bom! Que entusiasmo dali vinha! Fui logo atingido por ele, sentia-o que já dava pelo menos para dois dias de coragem no corpo. Nem sequer esperei que reacendessem as luzes da sala. Encontrava-me disposto a todas as resoluções do sono, depois de ali ter absorvido um pouco daquela tão admirável exaltação da alma.

De regresso ao Laugh Calvin, ainda que tivesse cumprimentado o porteiro, ele dispensou-se de me desejar as boas noites, tal como os de cá, mas agora estava-me nas tintas para o seu desprezo de porteiro. Uma forte vida interior bastava-se a si própria, só ela é capaz de fundir vinte anos de icebergues. É assim mesmo.
No meu quarto, mal tinha fechado os olhos, a loira do cinema voltou a cantar, e destas vez só para mim, toda a melodia da sua desgraça. Ajudei-a por assim dizer a adormecer-me e consegui-o muito bem... já não me sentida de facto só...É impossível dormir só...


Céline, Viagem ao fundo da noite.

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