Na Idade Média, as grylles eram figuras monstruosas cujo corpo se reduzia a partes anatómicas andantes. Costumavam arrastar, na parte traseira, a cara do homem velho ou Adão pecador, simbolizando a eterna prisão do ser humano aos pecados carnais.


Com Bosch a monstruosidade ultrapassa os limites catalogados em espécies, dando origem a novas grylles híbridas de gula e luxúria feita homem.
Transformam-se em figuras que agigantam detalhes sexuais, enquanto fazem desaparecer as restantes partes do corpo. Tendem a tornar-se protagonistas, saindo das margens e tornando-se actores principais entre tentações de santos e pecados humanos.






Estes híbridos tende a contaminar os gostos artísticos em bizarrias cada vez mais pagãs e fantásticas.
No século XVIII são condenados como barbarismos comparados à caricatura. Francis Grose (1731-91), nas regras para desenhar caricaturas que publicou em 1789, considera-os abusos inaceitáveis que desviam os próprios ideais europeus de beleza, gerando apenas uma vulgaridade horrível.







Enquanto figuras grotescas, a brutalidade visual destas formas só tinha comparação com os amorfos- pedaços inviáveis da natureza, expostos como órgãos autónomos em gabinetes de curiosidades.
Tal como os monstros, atraem pelo excesso de olhar que convocam mas não têm identidade nomeável. São apenas fragmentos de carne que insistem em imitar a vida; corpos sem órgãos, esvaziados de sentido.


As Euménides de Francis Bacon também acabam por tomar posse dos seres que habitavam. À semelhança da cena histérica do olho do cu que toma posse do corpo, no Naked Lunch de Burroughs, os corpos-sexo, que tentam locomover-se sem irem a lado nenhum, são a carne do talho a que todos os seres se resumem - o humano virado do avesso.




"I would like my pictures to look as if a human being had passed between them, like a snail, leaving a trail of human presence and memory trace of past events, as the snail leaves its slime."

Francis Bacon

Imagens:
1, 2- Hieronimus Bosh, As Tentações de Santo Antão (detalhes)
3, 4- Fortunius Licetus, Amorphous Monster, in De Monstris, 1665
5-Francis Bacon, Segunda versão do Triptico de 1944, 1988 (painel da esquerda)
6- Trípico inspirado na Oresteia de Ésquilo, 1981 (fig. central)
7- Estudo do Corpo Humano, Figuras em movimento, 1982; 8- Díptico, 1982 (painel esquerda)

2 comentários:

Flávio disse...

Eu sempre que vejo os bonecos do Bacon, lembro-me do monstro do carpenteriano The Thing (cortesia do genial Rob Bottin) e vice-versa. Não me admirava nada que o primeiro tivesse inspirado o segundo.

zazie disse...

o Bacon inspirou-se nos monstros de Picasso para criar as Euménides (aliás Picasso era para ele um dos maiores).
Quanto ao monstrinho do the thing parece que foi buscar muito ao eraserhead do David Lynch.
é o que dizem...