(em continuação)
Giambattista della Porta acentua o lado bizarro nas ilustrações que acompanham o tratado e insinua-se por áreas em que a humanidade se expande para outros reinos A pesquisa de semelhanças cósmicas leva-o a procurar semelhanças no próprio reino vegetal, afastando-se assim da legitimação moralizadora em que ainda se podiam incluir os zoomorfismos.
São os olhos, as sobrancelhas, que se comparam a ramos e raízes, como se toda a geração estivesse sujeita aos mesmos princípios indecifráveis, caminhando para a possibilidade do homúnculo liberto das grilhetas adamitas. O corpo e o natureza fundem-se; ramificam-se os dedos das mãos do mesmo modo que as raízes de uma planta; arqueiam-se sobrancelhas como o corpo de um roedor; todos os detalhes e partes da antureza tornam-se metáforas recíprocas, examinadas como se de uma enciclopédia das formas se tratasse. No De Humana Physiognomia (1586) os paralelos transformam-se numa autêntica taxionomia iconográfica.Os dentes humanos fazem lembrar os “dentes” na casca de um ananás, nas sementes de um fruto ou na raiz de uma flor. As expressões faciais conjugam-se com um catálogo do reino vegetal e incluem receitas à base de ervanária aplicada a cada órgão do corpo
Esta cartografia da face e da alma, ainda esteve sob censura por parte da Igreja, a quem nunca agradaram as artes mágicas, mas escapou ao Índex com o bom argumento que os traços humanos apenas atestam predisposições e que o livre-arbítrio da consciência permanecia.
A convivência destas tradições materialistas com a ortodoxia religiosa prossegue de forma mais pacífica que muitas vezes se supõe. Em pleno século XVII o erudito médico Sir Thomas Browne (1605-82) na Religio medici (1635) continua a afirmar que certos caracteres na nossa face que transportam o moto das nossas almas, discordando que tal se deva à influência planetária pois pensa que apenas exprime o temperamento.
A importância da ilustração figurativa é decisiva, razão pela qual os próprios médicos conseguiam maior aprovação das teorias pela capacidade de ilustrarem os seus tratados. No caso destas experiências em torno das marcas fisionómicas os caminhos entrecruzam-se e vão caminhar a par até muito tarde.
Lavater tanto recebe esta herança por via de Giambattista como usa os desenvolvimentos que Charles le Brun, pintor de corte de Luís XV e ditador das belas artes conservadoras da corte havia desenvolvido.
O talento de desenhador está bem patente no refinamento que imprime nestes desvios por trabalhos “menores” que só vieram a ser publicados postumamente em 1698, como "método para aprender a desenhar as paixões”.
A ilustração torna-se decisiva para a divulgação destes estudos, motivo pelo qual deparamos com trocas entre artistas e “fisiólogos”. No entanto nem todos seguem as taxionomias e desenhos espartilhados.
Foi o que aconteceu com Rubens, igualmente atraído por estas derivações em torno da bestialização da alma humana. Nos esboços que executou em Itália e que acabou por inserir no Tratado da figura humana há toda uma interiorização da força bestial, em fisionomias inquietas e agitadas, cuja potência se exterioriza numa espécie de “terriblitá” mais próxima de Miguel Angelo que dos catálogos analíticos dos restantes fisionomistas.
Não terá sido por acaso que foi nele que Masson veio beber as influências, quando as experiências surrealistas se voltaram de novo para estas tradições mais “underground” da arte.
Paralelamente também se tinha dado uma bifurcação artística entre esta "cartografia" de marcas astrológicas do carácter humano e as derivações “bárbaras” e satíricas, mais próximas da etimologia das momices do deus grego.
Com efeito, assite-se a uma evolução da própria noção de riso medieval- grotesco e escancarado- para a um gozo mais subtil, a partir do renascimento.
Artisticamente os zoomorfismos vão dando lugar a exageros caricaturais das próprias feições, tornando-as bestiais sem necessitarem de perder a intrínseca natureza humana. Leonardo da Vinci praticou-o à margem, neste caso sem qualquer intuito para-científico, apenas como um refinamento do humor dando origem à caricatura.
Simplesmente a caricatura era um desregramento facial, uma bestialização do ser humano por excessos que monstruosos em que perde a sua humanidade sem no entanto reflectir qualquer particularidade cósmica ou psicológica passível de organização sistémica.
O problema não será detectado por um cientista mas por um pintor satírico. Hogarth, (1697-1764) deu seguimento à fisionomia e no tratado de estética- Analysis of Beauty (1753), não só aconselha os artistas a estudarem os trabalhos de Le Brun como tentou (ainda que sem grandes resultados) separar os traços de carácter das caricaturas, de modo a que estes não fossem tomados por troça.
Hogarth teve uma verdadeira obsessão por esta diferenciação, a que no entanto nunca conseguiu dar forma convincente. Um ano antes de morrer ainda andava à volta do assunto, a propósito dos desenhos dos prepotentes juízes da série The Bench. Queixava-se que não lhe entendiam as marcações de carácter, insistindo em confundi-las com a caricatura, tal como as suas pinturas e gravuras satíricas também eram consideradas uma arte de segunda.
Importa salientar a mudança progressiva do uso de um bestiário moralizado para uma posterior ideia de mundo como animal vivo- que tem equivalência artística nas bizarrias de um Arcimboldo, como o tem nas ligações éticas e físicas de um Giordano Bruno ou de um Hobbes-, a que se vai seguir a interiorização no eu psíquico que com Descartes se afasta definitivamente do mundo das associações mágicas.
As trocas de influências entre a arte e a ciência continuaram na obra de Lavater e atingiram um dos momentos mais importantes quando, Theódore Géricault acompanhou os estudos de Georget, precursor da psicanálise, captando na tela as primeiras tipologias de doenças mentais. Com este passo separava-se a caricatura monstruosa como marca de Deus para assinalar o desvio maligno, da patologia humana passível de entendimento e cura.
Contudo, o velho Tratado de Lavater não estava esquecido. No apogeu do nazismo recuperam-se estas “cartografias” da alma, frenologias e metroscopias congéneres, no intuito de se criarem definitivas taxionomias de raças.
O corpo teórico da Ciência, tal como o da Arte, nunca foi neutro mas os cruzamentos operados atestam como o percurso de institucionalização da primeira também equivalem à desmontagem do satus quo da segunda. Na charneira encontra-se a valorização do grande iceberg escondido- as pulsões automáticas que constituem o Eu- capazes de o universalizar dispensando na Arte o génio-criador e dando origem na Ciência a "novos magos". A psicologia moderna também ganhou em precisão tanto quanto perdeu em ambição cósmica- os remendos dos novos "psico-oráculos" deixaram de aspirar a harmonias que vão muito mais além do mundo do emprego ou do apartamento.
imagens:
1, 2, 3-Giambatista della Porta (Sócrates, homem-leão e Policiano com rinoceronte de Durer, 1602)
4, 5, 6, Della Porta, De Humana Physiognomia
7 Johann Casper Lavater, “raiva”do Essays on Physiognomy, 1792, gravura de J.Hogg, segundo Chodowiedki
8- James Parsons, mulher desdenhosa, de Crounian -Lectures on Muscular Motion, 1745
9, 10- Charles le Brun, esboços fisionómicos de c. 1727
11- Rubens, Homens leoninos, c.1605-1608
12, Masson, segundo desenho de Rubens, Le Monde, 1981
13- Leonardo Da Vinci, esboços fisionómicos- detalhe (Louvre, Cabinets des Dessins)
14- Hogarth, Caracteres, caricaturas, 1743
15, 16, Théodore Gericault, louca e louco, 1821-22
17- Litografia de Ambroise Tardieu para E. Esquirol, Des maladies mentales, Atlas, Paris, 1838
18- Ataque demoníaco, A. Delahaye e E. Lecrosnier, gravura para Études Cliniques sur la Grande Hystérie ou Hystéro-Épilepsie. do Dr. Paul Richer, 1885
consultar:Jurgis BALTRUSAITIS, Aberrations. Essai sur la légende des formes. Perspectives dépravées, Flammarion, Paris, 1995
Barbara Maria STAFFORD, Boddy Cristicism, Imaging the unseen in Enlightenment Art and Medicine, The MTF Press, Cambridge, Massachusetts, London, 1992